«(…) Acredito que, nessa condição, ela sente traumas que sofreu no decorrer da sua adolescência e tenta escapar a essas lembranças entrando, a intervalos, na sua condição segunda. Nessa, Diana aparece como uma criatura branda e cheia de candura, é uma boa cristã, pede sempre o seu livro de orações, quer sair para ir à missa. Mas o fenómeno singular, que também acontecia com Félida, é que na condição segunda, quando é a Diana virtuosa, ela se lembra muito bem de como era na condição normal, se atormenta, se pergunta como pode ter sido tão má, se castiga com um cilício a tal ponto que chama a condição segunda seu estado de razão, e evoca sua condição normal como um período no qual era vítima de alucinações. Na condição normal, ao contrário, Diana não se lembra de nada do que faz na condição segunda. Os dois estados se alternam a intervalos imprevisíveis, e às vezes ela permanece numa ou na outra condição por vários dias. Eu concordaria com o doutor Azam quando fala em sonambulismo perfeito. De facto, não apenas os sonâmbulos, mas também os que consomem drogas, haxixe, beladona, ópio ou abusam do álcool, fazem coisas das quais não se lembram ao despertar. Não sei porque a narrativa sobre a doença de Diana me deixou tão intrigado, mas recordo ter dito a Du Maurier: Falarei disso com um conhecido meu, que cuida de casos lastimáveis como esse e sabe onde hospedar uma jovem órfã. Enviarei o abade Dalla Piccola, um religioso muito poderoso no âmbito das instituições pias.
Portanto, quando falava com Du
Maurier, eu conhecia no mínimo o nome de Dalla Piccola. Mas porque me preocupava
tanto com aquela Diana?
Estou escrevendo
ininterruptamente há horas, o polegar me dói, e me limitei a comer sempre à
minha mesa de trabalho, espalhando patê e manteiga no pão, com uns copos de Château
Latour, para estimular a memória. Gostaria de me premiar, não sei, quem sabe
com uma visita ao Brébant-Vachette, mas, enquanto
não compreender quem sou, não posso me mostrar por aí. Seja como for, mais cedo
ou mais tarde deverei aventurar-me ainda pela place Maubert, afim de trazer
para casa alguma comida. Por enquanto não pensemos nisso, e voltemos a
escrever.
Naqueles anos creio ter sido em
1885 ou 1886 , conheci no Magny aquele que continuo a recordar como o doutor austríaco
ou alemão . Agora volta-me à mente o nome, chamava-se Froide acho que se
escreve assim, um médico com 30 anos, que certamente só ia ao Magny porque não
podia se permitir algo melhor e que fazia um período de aprendizado com
Charcot. Costumava se sentar à mesa vizinha e, no início, nos limitávamos a
trocar um educado aceno de cabeça. Eu o tinha julgado de natureza melancólica,
um pouco deslocado, timidamente desejoso de que alguém escutasse suas confidências
para descarregar um pouco das suas ansiedades. Em duas ou três ocasiões, ele havia
buscado pretextos para trocar umas palavras, mas eu sempre me mantivera
reservado. Embora o nome Froide não me soasse como Steiner ou Rosen-berg, eu
sabia que todos os judeus que vivem e enriquecem em Paris têm nomes alemães, e,
desconfiado daquele nariz adunco, um dia perguntei a Du Maurier, o qual fez um
gesto vago, acrescentando: Não sei bem, mas em todo o caso me mantenho à parte;
judeu e alemão é uma mistura que não me agrada.
Ele não é austríaco?,
perguntei. Dá no mesmo, não? Mesma língua, mesmo modo de pensar. Não esqueci os
prussianos que desfilavam pelos Champs-Elysées. Disseram-me que a profissão médica
está entre as mais praticadas pelos judeus, tanto quanto o empréstimo a juros. Sem
dúvida, é melhor nunca precisar de dinheiro e jamais cair doente. Mas também
existem os médicos cristãos, sorriu Du Maurier, gélido. Eu tinha cometido uma
gafe. Entre os intelectuais parisienses, há quem admita, antes de exprimir a própria
repugnância ante os judeus, que alguns dos seus melhores amigos o são.
Hipocrisia. Não tenho amigos judeus Deus me livre; na minha vida sempre evitei
essa gente. Talvez os tenha evitado por instinto, porque o judeu veja só, como
o alemão sente-se pelo bodum disse-o inclusive Victor Hugo, fector judaica, que
os ajuda a se reconhecerem, por esses e outros sinais, como acontece aos
pederastas. Meu avô me recordava que o cheiro deles resulta do uso desmedido de
alho e cebola e talvez das carnes de carneiro e de ganso, sobrecarregadas por açúcares
viscosos que as tornam atrabiliárias». In Umberto
Eco, O Cemitério de Praga, 2010, tradução de Joana Angélica Melo, ePUBr,
Biblioteca Digital Brasileira, Editora Record, Rio de Janeiro, 2011, ISBN
978-850-109-284-7.
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