domingo, 16 de janeiro de 2022

O Cemitério de Praga. Umberto Eco. «… , o qual fez um gesto vago, acrescentando: Não sei bem, mas em todo o caso me mantenho à parte; judeu e alemão é uma mistura que não me agrada»

Cortesia de wikipedia


«(…) Acredito que, nessa condição, ela sente traumas que sofreu no decorrer da sua adolescência e tenta escapar a essas lembranças entrando, a intervalos, na sua condição segunda. Nessa, Diana aparece como uma criatura branda e cheia de candura, é uma boa cristã, pede sempre o seu livro de orações, quer sair para ir à missa. Mas o fenómeno singular, que também acontecia com Félida, é que na condição segunda, quando é a Diana virtuosa, ela se lembra muito bem de como era na condição normal, se atormenta, se pergunta como pode ter sido tão má, se castiga com um cilício a tal ponto que chama a condição segunda seu estado de razão, e evoca sua condição normal como um período no qual era vítima de alucinações. Na condição normal, ao contrário, Diana não se lembra de nada do que faz na condição segunda. Os dois estados se alternam a intervalos imprevisíveis, e às vezes ela permanece numa ou na outra condição por vários dias. Eu concordaria com o doutor Azam quando fala em sonambulismo perfeito. De facto, não apenas os sonâmbulos, mas também os que consomem drogas, haxixe, beladona, ópio ou abusam do álcool, fazem coisas das quais não se lembram ao despertar. Não sei porque a narrativa sobre a doença de Diana me deixou tão intrigado, mas recordo ter dito a Du Maurier: Falarei disso com um conhecido meu, que cuida de casos lastimáveis como esse e sabe onde hospedar uma jovem órfã. Enviarei o abade Dalla Piccola, um religioso muito poderoso no âmbito das instituições pias.

Portanto, quando falava com Du Maurier, eu conhecia no mínimo o nome de Dalla Piccola. Mas porque me preocupava tanto com aquela Diana?

Estou escrevendo ininterruptamente há horas, o polegar me dói, e me limitei a comer sempre à minha mesa de trabalho, espalhando patê e manteiga no pão, com uns copos de Château Latour, para estimular a memória. Gostaria de me premiar, não sei, quem sabe com uma visita ao Brébant-Vachette, mas, enquanto não compreender quem sou, não posso me mostrar por aí. Seja como for, mais cedo ou mais tarde deverei aventurar-me ainda pela place Maubert, afim de trazer para casa alguma comida. Por enquanto não pensemos nisso, e voltemos a escrever.

Naqueles anos creio ter sido em 1885 ou 1886 , conheci no Magny aquele que continuo a recordar como o doutor austríaco ou alemão . Agora volta-me à mente o nome, chamava-se Froide acho que se escreve assim, um médico com 30 anos, que certamente só ia ao Magny porque não podia se permitir algo melhor e que fazia um período de aprendizado com Charcot. Costumava se sentar à mesa vizinha e, no início, nos limitávamos a trocar um educado aceno de cabeça. Eu o tinha julgado de natureza melancólica, um pouco deslocado, timidamente desejoso de que alguém escutasse suas confidências para descarregar um pouco das suas ansiedades. Em duas ou três ocasiões, ele havia buscado pretextos para trocar umas palavras, mas eu sempre me mantivera reservado. Embora o nome Froide não me soasse como Steiner ou Rosen-berg, eu sabia que todos os judeus que vivem e enriquecem em Paris têm nomes alemães, e, desconfiado daquele nariz adunco, um dia perguntei a Du Maurier, o qual fez um gesto vago, acrescentando: Não sei bem, mas em todo o caso me mantenho à parte; judeu e alemão é uma mistura que não me agrada.

Ele não é austríaco?, perguntei. Dá no mesmo, não? Mesma língua, mesmo modo de pensar. Não esqueci os prussianos que desfilavam pelos Champs-Elysées. Disseram-me que a profissão médica está entre as mais praticadas pelos judeus, tanto quanto o empréstimo a juros. Sem dúvida, é melhor nunca precisar de dinheiro e jamais cair doente. Mas também existem os médicos cristãos, sorriu Du Maurier, gélido. Eu tinha cometido uma gafe. Entre os intelectuais parisienses, há quem admita, antes de exprimir a própria repugnância ante os judeus, que alguns dos seus melhores amigos o são. Hipocrisia. Não tenho amigos judeus Deus me livre; na minha vida sempre evitei essa gente. Talvez os tenha evitado por instinto, porque o judeu veja só, como o alemão sente-se pelo bodum disse-o inclusive Victor Hugo, fector judaica, que os ajuda a se reconhecerem, por esses e outros sinais, como acontece aos pederastas. Meu avô me recordava que o cheiro deles resulta do uso desmedido de alho e cebola e talvez das carnes de carneiro e de ganso, sobrecarregadas por açúcares viscosos que as tornam atrabiliárias». In Umberto Eco, O Cemitério de Praga, 2010, tradução de Joana Angélica Melo, ePUBr, Biblioteca Digital Brasileira, Editora Record, Rio de Janeiro, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.

 

Cortesia de ERecord/JDACT

 

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