Paris, 4 de Junho de 1940
«(…) Parece um operário!,
trauteou a senhora em pleno hall,
as cordas vocais sempre à procura do registo certo, que nunca encontrariam.
Sara!, gritou, enchendo o peito de ar como uma cantora de ópera em frente à
plateia. Carol est là! Do
primeiro andar escutou-se uma frase ininteligível, que a governanta interpretou
como aprovação, apontando o dedo indicador gorducho para cima, sem sentir a necessidade
de fornecer uma explicação adicional. Enquanto Carol subia as escadas, avisou-a
de que contava com ela ao jantar, ia mandar pôr mais um lugar à table, cantarolou ao
afastar-se, abafando o agradecimento da minha prima com o ressoar dos seus tacões
no chão de madeira do corredor. Já no patamar do primeiro andar, Carol estacou
ao deparar-se-lhe François, de joelho pousado no chão, olho esquerdo fechado,
fisga apontada e uma pedra pronta para ser atirada. Prudente, ela sorriu. Meses
de permanentes visitas à casa da amiga tinham-na levado à conclusão de que só
neutralizava as hostilidades de François com um sorriso, a senha certa para um
subtil armistício. Viste a Gestapo?, com ar de entendido, o rapaz explicou que
as bandeirinhas nazis e o Mercedes negro
não deixavam dúvidas. E a pistola é uma Mauser Luger P08, só a Gestapo as usa, garantiu,
acrescentando uma certeza preocupante: Procuram o meu pai. Porquê?, perguntou a
minha prima. François manteve o ar solene, enquanto colocava a pedra no bolso. Escapaste
de boa. A esta distância, rachava-te a cabeça, como farei ao nazi, se entrar cá
em casa. Numa tentativa clara para imitar a voz rouca de Churchill, gritou We shall never surrender! e
a seguir atirou-se pelas escadas a baixo aos saltos, três degraus de cada vez,
impulsionando-se com a mão direita no corrimão, que agarrava e largava com a
destreza de um símio dominador daquela selva doméstica. Está cada vez mais
nervoso, comentou Sara.
A amiga estava à porta do quarto
e Carol sentiu-a aflita. Com vinte e dois anos, a mesma idade da minha prima,
era lindíssima e dona de uns longos cabelos loiros realçados pelo contraste não
só com os olhos castanhos, mas também com o manto de pequenas sardas que lhe
cobria a pele rosada. O rosto de Sara, de tão perfeito, parecia desenhado por
um pintor com a ambição clara de impressionar as gerações vindouras. A testa e
as sobrancelhas, as bochechas e o queixo, a boca e os lábios, tudo tinha a
proporcionalidade e a dimensão certas. Apenas o nariz destoava, pois apresentava
no final um ligeiro levantamento que o arrebitava (Sara chamava-lhe um salto de
ski), criando um resultado
inesperado, magnificamente humano, como se aquela fosse a imperfeição
necessária para garantir que ela não era uma deusa do Olimpo, mas sim uma
mulher real.
Naturalmente, a sua proverbial
beleza afectava os alunos e os professores da Sorbonne, só que, apesar de ser
muito cortejada, Sara mantinha um permanente distanciamento que muitos
interpretavam como arrogância, mas que não era mais do que um escudo protector.
A amiga temia magoar-se, sofrer de mal
d´amour, dizia sempre que era cedo para se apaixonar, pois ainda
tinha muito para viver. Havia nela uma permanente recusa do romantismo, como se
namorar fosse apenas uma desconfortável tolice. Tu é que gostas disso,
justificava-se a Carol, deixando para trás uma mão cheia de pretendentes
rejeitados. Tratava-se de um desligamento forçado, pois, se em sociedade Sara
se mostrava alheada e muito racional, sofria uma clara metamorfose perto do
irmão, ou mesmo do pai e da mãe. Tinha iras intempestivas e, após esses
momentos em que mostrava o seu lado avassalador, corava e alegava que François
lhe fazia estalar o verniz! Carol já a vira atirar um sapato, uma moldura, até
um vaso de flores, sempre contra o irrequieto irmão. A bela esfinge que
obrigava os pescoços masculinos a rodarem, a notável figura geradora de
silêncios aduladores quando passava, transformava-se numa fera de dentes e
punhos cerrados, cujos cabelos ficavam despenteados, como que vítimas de um
tornado, mal François ultrapassava o denominado limite do aceitável, uma linha
imaginária que ninguém sabia onde ficava, mas que avançava a olhos vistos,
sobretudo depois da invasão da França pelos nazis. Tem medo de que prendam o
meu pai, acrescentou Sara. Mas o que quer a Gestapo?, inquietou-se Carol.
Paris. 4 de Junho de 1940
A tensão na sala de jantar
teimava em não se desvanecer, como se nem a ementa, uns linguados au meunier bem temperados,
acompanhados por batatas cozidas e legumes salteados, nem a decoração elegante,
lírios, girassóis, cravos e miosótis coloridos misturavam-se num centro de mesa,
fossem capazes de diluir a preocupação dos comensais. Um peso no peito oprimia
Carol. Fora um dia demasiado longo, carregado de surpresas desagradáveis. As
bombas durante a noite, a decisão de madre Mary de encerrar o convento e a
residencial, a suspensão inesperada das aulas na universidade, os parisienses
em fuga atabalhoada, a partida sem aviso de Jean-Luc, as tentativas de roubo da
Hirondelle e, por
fim, a presença da Gestapo à porta de casa da amiga. A minha prima sabia que
Marcel e Anne tinham ido de carro a Estrasburgo há vários dias, com a intenção
de trazer de lá a mãe de Marcel, uma senhora de oitenta anos chamada Raquel,
que vivia sozinha na velha casa da família». In Domingos Amaral, A Bicicleta
que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.
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JDACT, Domingos Amaral, Literatura, Paris,