Cidade do México, 1649
«(…) A procissão partiu ao amanhecer. Os relaxados receberam uma
cruz verde. Alguns iam amordaçados, inclusive Sobremonte, que caminhava pelas
ruas como um vulcão de desespero [...] todos lhe gritavam, tentando persuadi-lo
ou rezando por ele. Mas ele não os ouvia, pois estava furioso até consigo
mesmo. Sua obstinação era para ele uma questão de honra. Cada relaxado ia
acompanhado por dois confessores, que não paravam de orar e exortar o condenado
a se arrepender. Muitos confessores choravam, o que provocava copiosas lágrimas nos olhos da
multidão, ao ver o espírito caridoso demonstrado pelos sacerdotes e o pouco
interesse demonstrado pelo acusado. Depois dos prisioneiros vinham os padres da
Inquisição (maldita), acompanhados de uma mula que carregava um baú com os documentos
do julgamento e as sentenças dos acusados. A cabeça da mula era enfeitada com placas de prata gravadas com floreios em ouro; do pescoço
pendiam sinos de prata e ouro, e o baú com os documentos era lilás, com
incrustações japonesas e elaboradas placas de cobre. Aquela magnífica peça
teatral paralisou toda a colónia. As pessoas percorreram mais de 1.500 quilómetros
para assistir a ela, então parecia que toda a Nova Espanha ficara despovoada e
viera para a Cidade do México. Os espectadores penduravam-se em cercas, andaimes,
coches e balcões; ocuparam 16 mil assentos diante do cadafalso, gritando e aplaudindo,
atraídos pela religiosidade do acontecimento e fascinados com os prisioneiros. Quando
os condenados subiram ao cadafalso para ouvir as sentenças, o frei jesuíta
Matias Bocanegra maravilhou-se com os feitos do inquisidor-geral Mañozca, cuja gloriosa
solenidade, capacidade de compreensão, inteligência sagaz, madura discrição,
antiga experiência, zelosa integridade, tudo [...] justificava a sua obra. Acima
de tudo, Bocanegra ressaltava, estava a sua pacífica conduta. Ele sempre
administra a justiça numa bela aliança com a paz. Este poderia ser o lema do
seu pálio: A justiça e a paz se beijaram.
Justiça e paz eram palavras inadequadas para descrever o
comportamento usual de Mañozca. Os registos sobre ele revelam uma abordagem
mais diversificada da arte da perseguição inquisitorial. Na realidade, a
verdadeira personalidade de Mañozca tinha ficado evidente ao longo de quarenta
anos, desde a sua nomeação como um dos primeiros inquisidores de Cartagena, na
Colômbia, em 1609. Em Cartagena, Mañozca e seu colega Mateo Salcedo
cultivavam o hábito de deter mercadores e confiscar o que quisessem, jogando-os
na prisão da Inquisição (maldita) caso não concordassem. Em Janeiro de 1624, Mañozca
foi acusado de contrabandear mercadorias para dentro e para fora de Cartagena e
de libertar os seus companheiros quando eles eram detidos por transportar
contrabando. Ele destruiu os rivais dos seus amigos e indicou um amigo para o
cargo de prior do mosteiro dominicano, apesar de ele não saber latim. Quando um
açougueiro da casa vizinha à sua provocou um grande alarido ao matar um porco, Mañozca
prendeu o mordomo e os empregados dele e jogou-os na prisão inquisitorial. Também
era de conhecimento público que ele tinha um caso com uma mulher casada da cidade.
Talvez na tentativa de
melhorar as coisas, o Conselho Supremo da Inquisição (maldita) na Espanha, a Suprema, transferiu Mañozca de Cartagena para Lima,
no Peru. Em 1625, ele foi enviado a Quito, no Equador, numa comissão de inquérito,
e imediatamente afastou todos os juízes, excepto o mais jovem, que ele dominava
por completo. Um colaborador de Mañozca passou a percorrer as ruas de Quito com
um bando armado, às vezes assaltando os oficiais reais na praça, e uma vez
esfaqueou um escravo africano com a sua própria espada, para verificar se ela
estava bem afiada. Mañozca mandou trazer prisioneiros acorrentados de Cali,
centenas de quilómetros ao sul da Colômbia, e os manteve encarcerados por oito
meses. No total, ele e seus parceiros passaram mais de dois anos acumulando dívidas
e praticamente arruinaram as autoridades coloniais da província. Esse tipo de
corrupção encorajava homens como Juan Pérez Segura, um comerciante do Peru dos
anos 1580, a declarar que os inquisidores deviam ser amarrados ao rabo de um cavalo.
Que delícia seria vê-los serem arrastados pelo mesmo esterco ao qual condenavam
tantos outros! Mas os inquisidores
eram considerados acima da lei. Dificilmente a litania de reclamações impediria
que Mañozca fosse indicado para o cargo de inquisidor-geral do México em 1643 e
que preparasse os processos que culminaram no grande auto de fé de 1649». In Toby Green,
Inquisição, O Reinado do Medo, 2007, Editora Objectiva, 2012, ISBN
978-853-900-354-9.
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Toby Green, JDACT, Literatura, Religião,