segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

A Bicicleta que Fugiu dos Alemães. Domingos Amaral. «A minha prima estremeceu com a frieza do olhar do nazi, mas o seu apurado sentido de observação captou alguns relevantes pormenores: a testa alta, o cabelo ralo e claro…»

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Paris, 4 de Junho de 1940

«(…) Um homem alto, coberto por um casaco longo e preto, tocou à campainha da bonita mansão parisiense, de dois andares e águas-furtadas, onde ela muitas vezes estudava para os exames. Curiosa, Carol travou a Hirondelle. O Mercedes exibia duas bandeirinhas nazis junto aos retrovisores, era certamente pessoal da Embaixada germânica, mas andarem à vontade por ali, apenas horas depois de terem bombardeado a capital de França? Que descaramento arrogante! A minha prima matutou sobre a possível razão daquela inesperada visita. Marcel, o pai de Sara, era um judeu francês, que, embora nascido em Estrasburgo, trabalhara décadas em Colónia, nas prósperas fábricas do seu já falecido progenitor, nacionalizadas uns anos antes, quando o ambiente hostil aos judeus, na Alemanha, se tornou irrespirável. Contudo, em Paris, onde sempre tivera casa, apesar de influente na comunidade judaica, Marcel raramente visitava a sinagoga, até porque Anne, sua mulher, era católica e obrigara Sara e o filho mais novo, François, a uma educação cristã. Subitamente, a porta da moradia abriu-se e surgiu mademoiselle Laffitte, uma senhora gorducha que apresentava sempre as bochechas coradas e uns óculos redondos e minúsculos pousados a meio da cana de um largo nariz. Fazendo deslizar a bicicleta no asfalto, Carol aproximou-se, para escutar as perguntas do alemão, que estava acompanhado por dois ajudantes, um já na rua, encostado ao Mercedes, outro sentado ao volante.

Monsieur Marcel n´est pas là!, indignou-se mademoiselle Laffitte, agudizando o tom de voz. A governanta da casa, perante qualquer incómodo, entrava em imediato descontrolo sonoro. Sem aviso, iniciava um irregular cântico, onde se misturavam gritinhos de intenção melodiosa com claras fífias. Estas curtas árias eram acompanhadas por um acelerado bater de pestanas, sobretudo na presença de François, um rapaz de catorze anos, impertinente e de mau feitio, dado a partidas de mau gosto e a palavreado grosseiro. Porém, quando viu a temível Mauser do alemão da Gestapo, que levantara a aba do casaco para exibir o coldre aberto, a voz estridente de mademoiselle Laffitte sumiu-se e uma palidez súbita tingiu de branco o seu rosto, como se tivesse vislumbrado não apenas uma pistola, mas a sua própria morte. O decidido nazi anunciou que regressaria em breve, para falar com monsieur Marcel, uma preocupante promessa que obviamente não extinguiu o terror primitivo da governanta. Os dois alemães reentraram no Mercedes e, antes de fechar a porta, o que falara fitou Carol, ainda montada na Hirondelle.

A minha prima estremeceu com a frieza do olhar do nazi, mas o seu apurado sentido de observação captou alguns relevantes pormenores: a testa alta, o cabelo ralo e claro, as pupilas azuis, as sobrancelhas simétricas e finas, a pele bem barbeada e um nariz esfíngico. Recordou-se das palavras de Polly sobre os alemães giros que podiam aparecer em Paris. Contudo, mesmo parecendo um actor americano, aquele homem assustava ao mesmo tempo que encantava, talvez devido ao fosso que separava o aspecto físico, sofisticado e até belo, da voz agreste, da determinação autoritária dos gestos e da crueza gélida do olhar. Foi essa dualidade chocante a responsável pelo constrangimento de Carol, que permaneceu rígida enquanto o Mercedes arrancava sem pressas. Só quando o viu a cem metros, próximo dos Jardins do Luxemburgo, é que observou novamente mademoiselle Laffitte, que se mantinha também imóvel, qual estátua de museu, com o olhar ainda fixo no preciso local onde tinham estado o alemão e a sua arma, como se esta continuasse lá, pronta a disparar.

A minha prima desmontou da Hirondelle e aproximou-se. Bonsoir, mademoiselle Laffitte, a Sara está? A governanta demorou quatro segundos a responder. Os seus olhos vaguearam pela rua, um minúsculo tique agitou-lhe as bochechas, as mãos juntaram-se e pousaram na proeminente barriga, como as dos mortos, até que por fim as pestanas bateram aceleradas e exclamou: Oui, elle est là!

Lembrando-se das duas tentativas de roubo da Hirondelle só nesse dia, Carol pediu permissão para entrar com ela, obtida antes da notificação musical de que Sara acabara de tomar banho. Numa curta cantata, mademoiselle Laffitte denunciou mais uma tentativa de perturbação da mana pelo temível François. O petit sauvage invadira a salle de bain com descaramento, obrigando-a a manter-se à porta, qual guardiã do templo, perante a rajada de insultos do rapazola, cujos péssimos colegas de colégio eram obviamente os responsáveis por aqueles ditos diabòliquesIn Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.

Cortesia CdasLetras/JDACT

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