Paris, 4 de Junho de 1940
«(…) Um homem alto, coberto por
um casaco longo e preto, tocou à campainha da bonita mansão parisiense, de dois
andares e águas-furtadas, onde ela muitas vezes estudava para os exames.
Curiosa, Carol travou a Hirondelle.
O Mercedes exibia duas
bandeirinhas nazis junto aos retrovisores, era certamente pessoal da Embaixada
germânica, mas andarem à vontade por ali, apenas horas depois de terem
bombardeado a capital de França? Que descaramento arrogante! A minha prima
matutou sobre a possível razão daquela inesperada visita. Marcel, o pai de
Sara, era um judeu francês, que, embora nascido em Estrasburgo, trabalhara
décadas em Colónia, nas prósperas fábricas do seu já falecido progenitor,
nacionalizadas uns anos antes, quando o ambiente hostil aos judeus, na Alemanha,
se tornou irrespirável. Contudo, em Paris, onde sempre tivera casa, apesar de
influente na comunidade judaica, Marcel raramente visitava a sinagoga, até
porque Anne, sua mulher, era católica e obrigara Sara e o filho mais novo, François,
a uma educação cristã. Subitamente, a porta da moradia abriu-se e surgiu mademoiselle
Laffitte, uma senhora gorducha que apresentava sempre as bochechas coradas e
uns óculos redondos e minúsculos pousados a meio da cana de um largo nariz.
Fazendo deslizar a bicicleta no asfalto, Carol aproximou-se, para escutar as
perguntas do alemão, que estava acompanhado por dois ajudantes, um já na rua,
encostado ao Mercedes, outro
sentado ao volante.
Monsieur
Marcel n´est pas là!, indignou-se mademoiselle Laffitte, agudizando o tom
de voz. A governanta da casa, perante qualquer incómodo, entrava em imediato descontrolo
sonoro. Sem aviso, iniciava um irregular cântico, onde se misturavam gritinhos
de intenção melodiosa com claras fífias. Estas curtas árias eram acompanhadas
por um acelerado bater de pestanas, sobretudo na presença de François, um rapaz
de catorze anos, impertinente e de mau feitio, dado a partidas de mau gosto e a
palavreado grosseiro. Porém, quando viu a temível Mauser do alemão da Gestapo, que levantara a aba do
casaco para exibir o coldre aberto, a voz estridente de mademoiselle Laffitte
sumiu-se e uma palidez súbita tingiu de branco o seu rosto, como se tivesse
vislumbrado não apenas uma pistola, mas a sua própria morte. O decidido nazi
anunciou que regressaria em breve, para falar com monsieur Marcel, uma
preocupante promessa que obviamente não extinguiu o terror primitivo da
governanta. Os dois alemães reentraram no Mercedes e, antes de fechar a porta, o que falara fitou
Carol, ainda montada na Hirondelle.
A minha prima estremeceu com a
frieza do olhar do nazi, mas o seu apurado sentido de observação captou alguns
relevantes pormenores: a testa alta, o cabelo ralo e claro, as pupilas azuis,
as sobrancelhas simétricas e finas, a pele bem barbeada e um nariz esfíngico.
Recordou-se das palavras de Polly sobre os alemães giros que podiam aparecer em
Paris. Contudo, mesmo parecendo um actor americano, aquele homem assustava ao
mesmo tempo que encantava, talvez devido ao fosso que separava o aspecto físico,
sofisticado e até belo, da voz agreste, da determinação autoritária dos gestos
e da crueza gélida do olhar. Foi essa dualidade chocante a responsável pelo
constrangimento de Carol, que permaneceu rígida enquanto o Mercedes arrancava sem
pressas. Só quando o viu a cem metros, próximo dos Jardins do Luxemburgo, é que
observou novamente mademoiselle Laffitte, que se mantinha também imóvel, qual
estátua de museu, com o olhar ainda fixo no preciso local onde tinham estado o
alemão e a sua arma, como se esta continuasse lá, pronta a disparar.
A minha prima desmontou da Hirondelle
e aproximou-se. Bonsoir,
mademoiselle Laffitte, a Sara está? A governanta demorou quatro segundos a
responder. Os seus olhos vaguearam pela rua, um minúsculo tique agitou-lhe as
bochechas, as mãos juntaram-se e pousaram na proeminente barriga, como as dos
mortos, até que por fim as pestanas bateram aceleradas e exclamou: Oui, elle est là!
Lembrando-se das duas tentativas
de roubo da Hirondelle
só nesse dia, Carol pediu permissão para entrar com ela, obtida antes da
notificação musical de que Sara acabara de tomar banho. Numa curta cantata, mademoiselle
Laffitte denunciou mais uma tentativa de perturbação da mana pelo temível François.
O petit sauvage invadira
a salle de bain com
descaramento, obrigando-a a manter-se à porta, qual guardiã do templo, perante
a rajada de insultos do rapazola, cujos péssimos colegas de colégio eram
obviamente os responsáveis por aqueles ditos diabòliques!» In
Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN
978-989-780-124-2.
Cortesia CdasLetras/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Literatura, Paris,