segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Domingos Amaral. Quando Lisboa Tremeu. 1755. «Gritei, procurando saber se estava ali alguém vivo, mas ninguém me respondeu. Ainda tentei escavar um pouco, afastar o entulho, mas depressa concluí que só avançaria se tivesse uma pá»

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«(…) Esta conversa entre o rapaz e o vizinho deve ter ocorrido cerca de meia hora antes de eu o ver pela segunda vez. Muhammed e eu ficámos junto à fonte, a beber e a descansar, e depois, não vendo o Cão Negro nas redondezas, decidimos descer, a caminho do Terreiro do Paço e do rio. A encosta onde ficava a Sé apresentava enormes danos nos edifícios, a grande maioria deles tinham sofrido derrocadas ou estavam esventrados ao meio, com os interiores à mostra.Como se fossem bolos a quem alguém havia cortado uma grande fatia exibiam os interiores, partes de quartos, camas, cadeiras, até lavatórios, suspensos no ar, presos por traves periclitantes. Roupa, utensílios íntimos, penicos, sapatos, colchas, formavam uma estranha mistura de cores, pedaços de madeira e tijolos soltos. Fomos descendo, quase sempre em silêncio, como que fazendo uma homenagem muda às vítimas do cataclismo, até chegarmos à zona da Igreja da Madalena. De repente, vimos um cão, um animal bonito, preto, com o pêlo brilhante, bem escovado. Passou por nós a abanar o rabo e a correr. Subiu um monte de entulho e começou a ladrar, entusiasmado, na direcção de outro monte de entulho. Depois, desceu, colocando as suas patas com cuidado, para não se ferir nas pedras e nas pontiagudas madeiras que emergiam do chão. Um vulto saiu de um buraco na terra e abraçou o cão com contentamento.

Percebi que era o mesmo rapaz que vira na fonte. Muhammed e eu aproximámo-nos e, quando chegámos a poucos metros, o rapaz viu-nos e ficou tenso. Examinava as nossas roupas desconfiado. Quem são vocês?, perguntou. Muhammed tossiu e chamei o cão com um assobio. Veio ter comigo e passei-lhe a mão pela cabeça, fazendo-lhe festas. O cão parecia contente e abanava muito o rabo. O rapaz observou-me sem dizer nada. É bonito, o teu cão, afirmei. O rapaz assobiou e o cão correu para ele. Depois, deu umas passadas rápidas para o lado, e enfiou-se por um buraco. Ouvimo-lo ladrar, e era um ladrar persistente, como se estivesse a chamar por alguém. O rapaz, ao ouvi-lo, desinteressou-se de nós e correu para o buraco, enfiando-se lá dentro. Espreitei: era uma espécie de passagem, onde uns degraus nasciam, um metro abaixo do nível do solo. O rapaz e o cão reapareceram. Acho que a minha irmã está lá em baixo. E tenho a certeza de que está viva, disse o rapaz. Examinei aquele aglomerado de pedregulhos e cascalho, e perguntei: A tua casa era aqui? O rapaz contou que estava em São Vicente de Fora, com a mãe, na missa, quando o terramoto os atingiu. A igreja abatera em cima da mãe, que morrera. Salvara-se porque saíra da igreja um pouco antes, pois queria regressar a casa, à procura da irmã, que ficara para trás com o padrasto. E o teu padrasto, onde está? O rapaz baixou a cabeça, desanimado. Está morto, vi o corpo dele lá em baixo. Mas o cão está agitado, sente que ela está viva. Bufei: Não sei, isto está tudo destruído. Chamaste por ela? O rapaz chamara, mas não ouvira a voz da irmã a responder. Podem ajudar-me a procurá-la?, perguntou. Já pedi ajuda a vários homens, e ao meu vizinho, que estava aqui há pouco, mas ninguém me quis ajudar.

Olhei para Muhammed. O árabe roía as unhas, nervoso. Sabia que ele ficava assim na presença de rapazinhos, e sabia também que nós éramos prisioneiros em fuga, e que devíamos sair da cidade o mais depressa possível. O rapaz insistiu: Posso dar-vos comida, se quiserem. Descobri lá em baixo carne e pão, e uma panela com batatas cozidas. Devia ser o nosso almoço, quando voltássemos da missa.

Ao ouvi-lo falar em comida, Muhammed aproximou-se, sorridente. Santamaria, Muhammed ir ter fome. Muhammed ir comer, depois ir ajudar. Sorri e aceitei a oferta do rapaz. Então, ele desceu ao buraco e regressou com uma panela. Sentámo-nos os três a comer, saboreando o repasto. Quando acabámos, o rapaz olhou para mim: Tu és mais alto, podes chegar mais longe. Concordei e desci pelo buraco. O rapaz seguiu-me e o cão também. À minha frente, num espaço escuro e coberto de argamassa e caliça, existiam elevações irregulares de pedras e madeira. Uma trave grande impedia o avanço. O rapaz explicou: Isto é a entrada da cave. Se conseguires remover essa trave, podemos passar. Lutei com o toro até que o consegui rodar. Empurrei-o para a direita, deixando uma abertura maior por onde podia passar. Contudo, muita poeira e pedras caíram em cima de mim, do rapaz e do cão. É melhor irem lá para fora, disse eu. Isto é perigoso. O rapaz e o cão saíram. Avancei, passando pela trave, e vi-me numa espécie de corredor, mas as suas paredes estavam destruídas, e havia uma enorme quantidade de pedras no chão, que se confundiam com o tecto daquele local. Podia acontecer um desabamento a qualquer momento, mas fui avançando até onde podia. Uns metros à frente, o monte de entulho crescia, impedindo-me de continuar até ao fundo da cave. Gritei, procurando saber se estava ali alguém vivo, mas ninguém me respondeu. Ainda tentei escavar um pouco, afastar o entulho, mas depressa concluí que só avançaria se tivesse uma pá.

Dei meia volta e de repente vi um vulto deitado. Rastejei até lá. Era um homem e estava morto, mas o que me chamou a atenção foi o facto de a sua garganta ter sido cortada por uma facada. Saí e expliquei ao rapaz ser impossível ir mais longe. Convicto, ele afirmou: – Então, vou procurar uma pá e tu ajudas-me a remover a terra. Bufei de novo. Há um homem morto, lá em baixo. Foste tu que lhe cortaste a garganta? O rapaz ficou muito sério, mas disse que não, e repetiu o que já me contara: encontrara o padrasto morto, mas não sabia que ele estava com a garganta cortada. Não tenho nada a ver com isso, mas também não quero vir a ter, disse eu. O homem foi assassinado. Não vou ficar aqui para me acusarem depois. Muhammed concordou. O rapaz ficou indignado: Mas, eu ajudei-vos! Dei-vos de comer. Prometeste que me ajudavas a procurar a minha irmã! Dei dois passos na direcção dele e disse: E ajudei, fui lá abaixo. Chamei e não se ouve nada. Não vi a tua irmã e vi o teu padrasto degolado. Para mim, chega. Saímos dali e nas minhas costas só ouvia os protestos e os insultos do rapaz: Mentiroso! És um mentiroso! Vocês são uns bandidos, se vir os guardas denuncio-vos! Duas pedras aterraram próximo de mim, e virei-me para trás. Com receio, o rapaz mergulhou no buraco, seguido pelo cão. Depois, espreitou, colocando só a cabeça de fora e gritou mais uma vez: Mentiroso!» In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755,