«(…) Ao narrar-me este episódio, Hugh Gold agarrou-se à barriga, à gargalhada: Sim, I know! Divertidíssimo, virou-se para mim: Good lord, cos diabos, where was my cabeça, my head? Tell this ao marido da senhora Locke, to the husband? Hell, he could ask: Como senhor sabe? How do you know, capitão? O que lhe respondia, what, hell? I know porque folgar Fridays with your wife! And ela adormece, sleeps, and ressona, seu cornudo! O capitão Hugh Gold deliciava-se com o ascendente que tinha sobre o senhor Locke por cobrir a mulher dele. É sempre assim com os amantes das mulheres casadas: há aquele sentimento de superioridade sobre o outro macho que os inebria, e os faz sentirem-se mais fortes do que o enganado. Good lord, cornudo e avarento, the poor man, rematou Hugh Gold. More money than me! Mas, what the hell, cos diabos, me fu… his mulher, wife dele! O capitão Hugh Gold não conseguia parar de rir, talvez para me impressionar, ou ao meu amigo Muhammed, sem saber que, nessa noite, mais alguém o ouvia e reflectia seriamente sobre aquelas palavras.
Além
de procurar a irmã, o rapaz andava também à procura do cão. Desde a noite
anterior que não sabia dele, e estranhara aquela ausência. E agora, ao olhar
para o que fora a sua casa, pensava no cão e no que lhe teria acontecido, e no
quanto ele o poderia ajudar a procurar a irmã. O cão era muito inteligente e
sabia perfeitamente o que fazer quando ele falava no nome da irmã. Por vezes, o
rapaz perguntava ao cão: Onde está a Assunção? E o cão lá ia procurar a irmã e
depois ladrava para avisar o rapaz de que a tinha encontrado. Portanto, se num
dia normal ele era capaz disso, naquele dia tenebroso ainda seria capaz de
mais. Só que o cão não estava em parte alguma, nem respondia aos chamamentos.
Após algum tempo, o rapaz parou, desanimado, e sentou-se no chão. Na verdade,
estava tão espantado e confundido que nem sequer tinha a certeza de aquela ser
a sua casa, pois nada parecia o que era dantes. Pessoas nuas ou vestidas
apareciam e desapareciam, almas perdidas a vaguearem por caminhos que julgavam que
conheciam, mas agora desconheciam. Às vezes, quando passavam mulheres e crianças,
o rapaz olhava os seus corpos nus e sujos e tinha vergonha por eles. Decidiu
explorar os escombros, mas a enormidade do esforço que encontrou pela frente fê-lo
pensar em pedir ajuda. Explicou aos caminhantes que a irmã estava dentro de
casa, que poderia ainda estar viva, que precisava de a procurar. Mas ninguém
sequer parava para o escutar. Algum tempo mais tarde, o rapaz encontrou um dos
seus vizinhos, já de uma certa idade, que tinha o braço cheio de sangue e os
olhos turvos de lágrimas, e lhe disse: Perdi a minha filha e o marido dela. Estão
mortos, ali, apontou. Não sei da minha mulher. O rapaz contou-lhe a sua história
e o homem benzeu-se e disse: Ninguém sobreviveu dentro destas casas... E depois
acrescentou: Vem comigo, vamos para o Terreiro do Paço. Aqui ninguém nos vai
ajudar. O rapaz não quis seguir o conselho do vizinho. Este insistiu: Isto está
cheio de ladrões. Entram nas casas e roubam tudo e, se lhes fazemos frente,
matam-nos. Não é lugar para um rapaz.
O
rapaz sabia disso e contou-lhe o que se tinha passado próximo da Sé, com os
espanhóis, e acrescentou: Não vou deixar que eles façam mal à minha irmã. O
vizinho fez uma pausa e depois perguntou: Acreditas que ela está viva? O rapaz
disse que acreditava. És um rapaz com muita fé, comentou o vizinho. Mas Deus
castigou-nos, castigou os pecadores desta cidade. O rapaz garantiu que a irmã não
era uma pecadora. O vizinho interrompeu-o: Ela não, mas o teu padrasto... O
rapaz emudeceu. A fama do padrasto era conhecida da vizinhança. Ainda hoje de
manhã, recordou o vizinho, depois de tu e a tua mãe terem saído para a missa,
vi o teu padrasto a conversar com a tua irmã e pela cara dele percebia-se o que
estava a dizer... Foi a vez de o rapaz o interromper: Ela nunca deixaria que
ele lhe fizesse alguma coisa. Não é dessas. O vizinho confirmou com um aceno de
cabeça, mas acrescentou: Mas ele é um homem forte... Não, gritou o rapaz. Ele não
lhe fez mal! Se lhe fez, mato-o! O vizinho sentiu a sua raiva, baixou os olhos
e disse: Lisboa está perdida... Deus castigou-nos... O rapaz, agora muito
agitado, perguntou: Viu o meu padrasto depois do que aconteceu?
Não. A última vez que o vi foi aqui à porta, a falar com a
tua irmã, a rir-se para ela, contou o vizinho. Depois, ela entrou em casa e
fechou a porta, e ele... O rapaz interrompeu-o: Não fale do que não viu. O
vizinho questionou-o: Estás a acusar-me de lançar falsos testemunhos? O rapaz
respondeu: Não. Vá-se embora, se quiser, deixe-me sozinho, vou continuar à
procura da minha irmã. Depois de dizer isto, o rapaz regressou ao local onde
antes ficava a porta de sua casa e começou a afastar as pedras e as traves. O
vizinho deu meia-volta e foi-se embora». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O
Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das
Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.
Cortesia de CdasLetras/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755,