Ávila
«(…) As velas nos castiçais
antigos projectavam sombras evocativas nos tectos e paredes. Em quatrocentos
anos, nada mudara dentro dos muros do convento, excepto os rostos. As irmãs não
tinham pertences pessoais, pois desejavam ser pobres, emulando a pobreza de
Cristo. A própria igreja era desprovida de ornamentos, salvo uma cruz de ouro
maciço, de valor inestimável, antigo presente de uma rica postulante. Por estar
tão em desacordo com a austeridade da ordem, era mantida num armário no refeitório.
Uma cruz de madeira simples pendia no altar da igreja. As mulheres que
partilhavam suas vidas com o Senhor viviam juntas, trabalhavam juntas, comiam
juntas e rezavam juntas, mas nunca se tocavam e se falavam. As únicas excepções
permitidas eram quando ouviam a missa ou quando a reverenda superiora Betina
lhes falava na privacidade da sua sala. Mesmo então, uma antiga linguagem de
sinais era usada ao máximo possível. A reverenda madre era uma religiosa com
cerca de setenta anos, expressão inteligente, jovial e dinâmica, glorificada na
paz e alegria de vida no convento, uma vida consagrada a Deus. Protectora
irredutível das suas freiras, sentia muita angústia quando era necessário impor
a disciplina, mais do que aquela que estava sendo punida. As freiras circulavam
pelos claustros e corredores de olhos baixos, mãos cruzadas dentro das mangas,
na altura do peito, passando e repassando pelas suas irmãs sem qualquer palavra
ou sinal de reconhecimento. A única voz no convento era a dos sinos, os sinos
que Vitor Hugo chamou de A ópera dos Campanários.
As irmãs vinham de antecedentes díspares
e de muitos países diferentes. Pertenciam a famílias de aristocratas,
camponeses, soldados... Chegaram ao convento como ricas e pobres, instruídas e
ignorantes, miseráveis e exaltadas, mas ali eram todas iguais aos olhos de
Deus, unidas no seu desejo de casamento eterno com Jesus. As condições de vida
no convento eram espartanas. No Inverno o frio era cortante, e uma luz pálida
filtrava-se pelas janelas gradeadas. As freiras dormiam plenamente vestidas em
enxergas de palha, cobertas por mantas ásperas de lã, cada uma na sua pequena
cela, mobilada apenas com uma cadeira de pau, de encosto recto. Não havia lavatório,
um pequeno jarro de barro e uma bacia ficava no chão, no canto da cela. Nenhuma
freira tinha permissão para entrar na cela da outra, à excepção da reverenda
madre Betina. Não havia nenhum tipo de recreação, apenas trabalho e orações. Havia
áreas de trabalho para tricotar, encadernar livros, fiar e fazer pão. Havia
oito horas de oração diárias: matinas, laudes, primas, terças, sextas, nonas, vésperas
e completas. Havia ainda outras devoções: bênçãos, hinos e litanias. Matinas era a oração que
se fazia quando metade do mundo estava dormindo e a outra metade absorvida no
pecado.
Laudes, o ofício do amanhecer, seguia-se às
matinas, o nascer do sol aclamando como a figura de Cristo, triunfante e
glorificado. Primas era
a oração matutina da igreja, pedindo as bênçãos para as obras do dia. Terças, acontecia às nove horas
da manhã, consagrada por Santo Agostinho ao Espírito Santo. Sextas, eram às onze e meia,
evocada para extinguir o calor das paixões humanas. Nonas, era recitada em silêncio às três horas da tarde, a
hora da morte de Cristo. Vésperas,
era o serviço vespertino da igreja, como laudes fora a oração do amanhecer. Completas, eram às últimas horas
canónicas dos ofícios divinos. Uma forma de orações nocturnas, um preparativo
para a morte e também para o sono, encerrando o dia com uma declaração de
submissão amorosa: Manus tuas, domine,
comendo spiritum meum. Redemisti nos, domine, deus, veritatis.
Em algumas das outras ordens a
flagelação fora abolida, mas sobrevivia nos conventos e mosteiros Cistercienses
de clausura. Pelo menos uma vez por semana, e às vezes todos os dias, as
freiras puniam seus corpos com a Disciplina, um açoite de trinta centímetros de
comprimento, de corda fina, encerado, com seis pontas nodosas que provocavam uma
dor angustiante; era usado para espancar as costas, pernas e nádegas. Bernard
de Clairvaux, o ascético abade dos Cistercienses, advertira: O corpo de Cristo
está aniquilado..., nossos corpos devem se conformar à semelhança do corpo
ferido de Nosso Senhor. Era uma vida mais austera do que em qualquer prisão,
mas as irmãs viviam em êxtase, como jamais ocorrera no mundo exterior. Haviam renunciado
ao amor físico, bens pessoais e liberdade de opção, mas ao abrirem mão dessas
coisas também renunciaram à ganância e competição, ódio e inveja, a todas as
pressões e tentações que o mundo exterior impunha. No interior do convento
reinava uma paz absoluta e o inefável sentimento de alegria pela união com
Deus. Havia uma serenidade indescritível dentro dos muros e nos corações das
mulheres que ali viviam. Se o convento era uma prisão, tratava-se de uma prisão
no Éden de Deus, com o conhecimento de uma eternidade feliz para as que
escolheram livremente ingressar e permanecer ali.
A irmã Lúcia foi despertada pelo
repicar do sino do convento. Abriu os olhos, surpresa e desorientada por um
momento. Na pequena cela em que dormia ainda estava escuro, uma escuridão desoladora.
O som do sino avisava-lhe que eram três horas da madrugada, quando o ofício das
vigílias começava. Droga! Esta rotina vai matar-me, pensou a irmã Lúcia». In
Sidney Sheldon, As Areias do Tempo, 1989, Publicações Europa-América, 2003, ISBN 978-972-105-176-8.
Cortesia PEuropaAmérica/JDACT
JDACT, Sidney Sheldon, Literatura, Espanha, Política,