Zarita
«(…) Estava acontecendo algo ali
naquele aposento que eu não entendia, mas era jovem, insensata e obstinada
demais para ser prudente e esperar e escutar. Explodi. Não há outros!, bradei. As
pessoas desta cidade são almas boas. Você tem de soltar Bartolomé
imediatamente! Ambos os homens se viraram para me encarar. A cor abandonou o
rosto de meu pai. Zarita! Você não deveria estar aqui. Ao contrário, afirmou o
padre Besian. É aqui exactamente onde sua filha deveria estar. Ela tem idade
suficiente para distinguir o bem do mal e precisa saber o que não será tolerado
pela igreja e pelo Estado. Virou-se para meu pai. Vou dar-lhe uma ordem agora.
Ninguém pode sair desta cidade sem antes recorrer a mim para pedir permissão. Essa
regra inclui cada membro da sua criadagem e família. Quem tentar sair será
preso e mantido sob a custódia dos agentes da Inquisição (maldita).
Na manhã seguinte fui acordada
por um grito. Num instante, fiquei totalmente desperta, pensando que era um
sonho ruim no qual eu atravessava um mar tempestuoso em direcção à minha mãe, só
para ver o bote em que ela estava a afundar-se. Outro grito.
Dessa vez, percebi que ele não
fazia parte do meu pesadelo. O grito veio da direcção do nosso celeiro, no lado
mais distante do padoque. Sentei-me. Meus olhos se arregalaram quando ouvi outro
grito agudo, depois outro, e mais outro, e, depois disso, um longo gemido. Soou
como um animal nos espasmos da morte. Saltei da cama, coloquei um longo
agasalho e saí do quarto para o patamar superior. Abaixo de mim, no saguão,
Lorena discutia com o pai. Quero ir para a casa de meu pai! O padre Besian deu
ordens em nome da Inquisição (maldita), disse-lhe o pai. Ninguém deve sair da
cidade sem sua autorização expressa. Não fazemos de facto parte da cidade. Lorena
abanou os braços no ar. Esta casa fica quase fora da cidade. O terreno é parte
da zona rural. Não podemos ser incluídos na ordem que controla o município. O
padre Besian declarou que mantém os ocupantes desta casa sob a jurisdição da
Inquisição (maldita). Como magistrado, certamente você tem mais poder, mais
direitos do que pessoas comuns. Comecei a descer a escada.
A voz de Lorena tornou-se um
guincho. Eu preciso sair daqui! Sinto muito. O pai falou mais delicadamente. Você
não pode ir. Direi que estou grávida. Seria bom que estivesse, retrucou o pai,
com um traço de amargura na voz. Você pode dizer que eu desmaiei e que tememos
pela vida da criança, por isso fui para a casa de meu pai, nas colinas, onde é
mais fresco. Não, disse papa. Não farei isso. Lorena atingiu-o na face com os
punhos. Ele deu um passo para trás, diante da agressão, e tentou segurar suas mãos.
Ela se livrou dele e correu para subir a escada, berrando pela sua criada.
Quase me derrubou na sua pressa. O pai olhou para ela e me viu parada ali. Zarita!
Talvez seja melhor ir para o convento e ficar lá com sua tia Beatriz. Talvez
seja..., mais seguro. Não tenho a certeza, respondi. O padre Besian não aprova
a ordem de irmãs de minha tia. Olhei na direcção da porta externa. Ouvi um
grito, como se um dos cavalos estivesse sofrendo. Há algo errado? O pai baixou
a cabeça para evitar meu olhar. Preciso voltar ao celeiro e ver o que está
acontecendo. Fique aqui até eu voltar. E deixou-me ali e se apressou em sair de
casa. Fui à sala de jantar. O café da manhã ainda não fora servido, portanto
segui até à cozinha. Era cedo, mas não tão cedo para que os empregados não
estivessem em actividade, preparando a comida. Não havia ninguém lá. A porta da
cozinha estava entreaberta. Fui até lá e olhei para fora. Serafina e Ardelia
estavam paradas na horta, olhando em direcção ao celeiro. Apoiavam-se uma na
outra de um modo receoso. O que está havendo?, gritei para elas. Um dos cavalos
está doente? Como não responderam, continuei: Onde está Garci? Está com meu
pai? Viraram os rostos para mim. Os olhos de Serafina estavam vermelhos e suas bochechas,
lívidas. Ardelia também estava chorando. Outro grito soou. Bartolomé!, Serafina
caiu de joelhos, estendendo as mãos para o céu e gritando: Maria Santificada,
interceda por ele! A verdade me atingiu com tal violência que me curvei com força.
Engoli em seco e coloquei as mãos sobre a barriga. Os sons que pensei virem de
um animal sofrendo foram proferidos por Bartolomé. Endireitei-me, apertei o
agasalho em volta do corpo e corri para fora da casa». In Theresa Breslin, Prisioneira
da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,