Cidade do México, 1649
«(…) No entanto, os perseguidores não actuavam no vácuo. O
talento de Mañozca para a tirania foi beneficiado pelo florescimento do que na época
era chamado de criptojudaísmo. Por volta de 1649, havia mais de 150 anos que o
judaísmo tinha sido condenado nos domínios espanhóis, e a religião das 25
congregações de judeus secretos no México era um híbrido peculiar de
catolicismo, judaísmo e rituais proibidos que, no México, eram associados ao sexo
ilícito. Apesar de ter sido encarregada de extirpar essa heresia dos territórios
espanhóis, a Inquisição (maldita) não tinha progredido muito desde a sua criação, em 1478.
Novas células desses rebeldes religiosos eram constantemente descobertas. Havia
até especialistas em detectá-las; homens como Mañozca, que, antes dos
acontecimentos no México em 1649, foi um dos que descobriram a grande conspiração
dos criptojudeus em Lima no final dos anos 1630. Tornou-se impossível separar
completamente perseguidores das heresias dos próprios hereges; em algum nível
profundo e inconsciente, eles pareciam necessitar uns dos outros. O auto de fé
de 1649 no México foi, em todos os sentidos, uma grandiosa peça teatral, mas não
passou de um episódio na história das inquisições ibéricas. Para as vítimas dos
inquisidores, como os criptojudeus do México, a resistência pontuava seu
sofrimento, e a música às vezes aliviava a tortura. Como dizia uma de suas
preces sabáticas:
Quem
canta seus males espanta; Quem chora seus males aumenta: Eu canto para remediar
O sofrimento que me atormenta.
É
preciso começar reconhecendo a amplitude do tema. De 1478 a meados do século
XVIII, a Inquisição (maldita) foi a mais poderosa instituição da Espanha e das suas colónias nas ilhas Canárias, na América
Latina e nas Filipinas. A partir de 1536, no vizinho Portugal e nas colónias portuguesas
na África, na Ásia e no Brasil, a Inquisição (maldita) foi preeminente durante 250 anos. Isso quer dizer que foi
uma força significativa em quatro continentes por mais de três séculos; estamos
tratando de um período que se estende da unificação da Espanha sob Fernando e Isabel,
no século XV, às guerras napoleónicas. Essa enorme abrangência de tempo e espaço
é condizente com o tamanho da classe criminosa observada. Foram instaurados
processos contra feiticeiras no México, bígamos no Brasil, franco-maçons
sediciosos, hindus, judeus, muçulmanos e protestantes, padres fornicadores e
marinheiros sodomitas. No México, a Inquisição (maldita) baniu o peiote, cacto alucinógeno sobre o qual Carlos Castañeda
escreveu entre 1960 e 1970, em 1620, porque ele fora levado para aquelas províncias
com o propósito de descobrir roubos, adivinhar acontecimentos e fazer previsões.
As práticas culturais indígenas, a feitiçaria e a superstição não eram
toleradas, ainda que muitos adivinhos e feiticeiros fossem evidentemente medíocres.
A Inquisição (maldita) realmente precisava se incomodar com feiticeiras como
Isabel Jiménez, denunciada na Guatemala em 1609 por prever a sorte lendo mãos
[...] contanto que fosse às sextas-feiras.
Uma das principais
semelhanças estruturais entre a Inquisição (maldita) em Portugal e na
Espanha era seu interesse por lugares tão remotos quanto Angola, Brasil, Cabo
Verde, Goa e México. Só os inquisidores ibéricos contavam com meios para
perseguir actos menores de blasfêmia e superstição pelo mundo, actos que seriam
motivo de riso em outras partes. Em Salvador da Bahia, no Brasil, o trabalhador Manuel Paredes foi denunciado pelo
cunhado, Girónimo Bairros, em 1591; Bairros se ofendera com a insinuação de
Paredes de que sua irmã Paula era tão virgem ao casar-se com ele quanto a
Virgem Maria ao dar à luz Jesus (a negação da virgindade de Maria tornou o caso
digno da Inquisição-maldita). Ideia semelhante foi manifestada por um certo
Domingo Hernández em Valdívia, no sul do Chile, por volta de 1580: ao falar sobre
como as mulheres de Valdívia dormiam com homens, [Hernández] afirmou que José também
havia dormido com Maria. Manter o controle sobre desrespeitos como esses era
uma maneira de sustentar a autoridade sobre aqueles impérios gigantescos. O
poder estava no cerne da Inquisição (maldita), assim como, inevitavelmente,
a religião permeava o campo da política. Não foi por acaso que em 1587, um ano
antes de a Armada espanhola rumar em direcção à Inglaterra, o primo de Francis
Drake, John, foi julgado pela Inquisição (maldita) em Lima. John Drake
perdera seu navio no Rio da Prata e passara 15 meses como prisioneiro dos índios
guaranis antes de conseguir fugir numa canoa e chegar à cidade de Assunção, no
Paraguai. De lá foi levado a Buenos Aires, onde foi preso e conduzido ao
quartel-general da Inquisição (maldita) mais próximo, em Lima, a milhares de quilómetros,
onde foi reconciliado no auto de fé de 1587 e encarcerado no mosteiro franciscano
da cidade, aos 23 anos. Pode-se especular se Francis Drake sabia do destino do primo
e se reflectiu sobre isso nos meses anteriores à chegada da Armada espanhola». In Toby Green, Inquisição, O Reinado do Medo, 2007,
Editora Objectiva, 2012, ISBN 978-853-900-354-9.
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Toby Green, JDACT, Literatura, Religião,