«(…) Sobre a mão de Hrotrud correu sangue quente, espalhando-se pelos seus braços e pela cama. Finalmente, ela sentiu a abertura ceder. Com um grito exultante, Hrotrud meteu a mão e agarrou na cabeça do bebé, exercendo uma pressão suave para baixo. Segurai-a pelos ombros e empurrai-a na minha direcção, disse ela ao cónego, que empalideceu. Mesmo assim, obedeceu. Hrotrud sentiu a pressão aumentar quando o cónego juntou a sua força à dela. Ao fim de alguns minutos, o bebé começou a descer para a passagem do nascimento. Ela continuou a puxar com firmeza, mas com cuidado suficiente para não magoar os ossos tenros da cabeça e do pescoço da criança. Por fim, apareceu o cimo da cabeça do bebé, coberto com uma massa de cabelo fino e molhado. Hrotrud puxou a cabeça para fora, com cuidado, depois virou o corpo para permitir que o ombro direito, depois o esquerdo, saíssem. Mais um puxão firme e o pequeno corpo deslizou, húmido, para os braços de Hrotrud, que o esperava.
Uma menina, anunciou Hrotrud. E
forte, pelo que parece, acrescentou ela, atentando, aprovadora, para o grande
grito lançado pela criança e para o tom saudavelmente cor-de-rosa da sua pele. Voltou-se
e encarou com o olhar reprovador do cónego. Uma menina, disse. Então, foi tudo
para nada. Não digais isso, senhor. Hrotrud ficou subitamente receosa de que a
desilusão do cónego significasse menos comer para ela. A criança é saudável e
forte. Se Deus quiser, há-de viver e honrará o vosso nome. O cónego abanou a
cabeça. Ela é um castigo de Deus. Um castigo pelos meus pecados e pelos dela. Voltou-se
para Gudrun, que estava imóvel. Ela irá sobreviver? Sim.
Hrotrud esperou ter sido
convincente. Não podia permitir que o cónego pensasse que tinha motivos para
estar duplamente desapontado. Ainda esperava provar carne nessa noite. E,
afinal, era razoável esperar que Gudrun sobrevivesse realmente. É verdade que o
parto tinha sido violento. Depois de um esforço tão grande, muitas mulheres
apanhavam febre e tinham hemorragias. Mas Gudrun era forte; Hrotrud trataria a
sua ferida com um unguento de artemísia misturada com gordura de raposa. Sim,
se Deus quiser, ela sobreviverá, repetiu ela, com firmeza. Não lhe pareceu
necessário acrescentar que, provavelmente, não teria mais filhos. Já é alguma
coisa, então, disse o cónego.
Aproximou-se da cama e ficou a
olhar para Gudrun. Tocou suavemente no cabelo louro, agora mais escuro, por
causa do suor. Por momentos, Hrotrud pensou que ele ia beijar Gudrun. Depois, a
sua expressão mudou. Ficou sério, mesmo zangado. Per mulierem culpa successit
disse ele. O pecado veio por uma mulher. Largou o caracol de cabelo e
recuou. Hrotrud abanou a cabeça. Qualquer coisa da Bíblia, certamente. O cónego
era uma pessoa estranha, não havia dúvida, mas isso não era da sua conta,
graças a Deus. Apressou-se para acabar de limpar Gudrun do sangue e da placenta
para poder regressar a casa ainda com luz do dia. Gudrun abriu os olhos e viu o
cónego debruçado sobre ela. O sorriso que começou a esboçar gelou-lhe nos
lábios quando viu a expressão dos seus olhos. Marido?, disse a medo.
Uma menina, disse o cónego,
friamente, sem se dar ao incómodo de ocultar o seu desagrado. Gudrun assentiu,
compreendendo, e voltou o rosto para a parede. O cónego virou-se para sair, mas
parou por uns instantes para olhar para a criança já bem aconchegada na sua
enxerga de palha. Joana. Chamar-se-á Joana, disse, e saiu do quarto,
abruptamente.
A trovoada soou muito perto e a
criança acordou. Mexeu-se na cama, à procura do calor e do conforto dos corpos adormecidos
dos seus irmãos mais velhos. Depois, lembrou-se. Os seus irmãos tinham-se ido
embora. Chovia. Um aguaceiro primaveril que enchia o ar da noite com o cheiro
agridoce de terra acabada de lavrar. A chuva fazia um ruído surdo no telhado da
cabana do cónego, mas a espessa cobertura de colmo mantinha a casa seca,
excepto num ou dois cantinhos, onde a água tinha começado a acumular-se,
pingando lentamente em gotas grossas sobre o chão em terra batida. Levantou-se
vento e as folhas de um carvalho junto da casa começaram a bater num ritmo
irregular de encontro às paredes. A sombra dos seus ramos projectava-se no
quarto. A criança observou, petrificada, como os monstruosos dedos negros se contorciam
à volta da cama. Estendiam-se para ela, procurando alcançá-la, e ela
encolheu-se. Mamã, pensou ela. Abriu a boca para a chamar, mas deteve-se. Se
fizesse barulho, a mão ameaçadora atacaria. Ficou gelada, incapaz de se mexer.
Depois, espetou o queixo resolutamente. Tinha de ser, portanto, fá-lo-ia.
Movendo-se com extrema lentidão, sem tirar os olhos do inimigo, levantou-se da
cama. Sentiu o chão térreo frio por baixo dos pés; a sensação familiar tranquilizou-a.
Mal se atrevendo a respirar, dirigiu-se para a parte da casa onde a mãe estava
a dormir. Relampejou; os dedos mexeram-se e esticaram-se como que para a
agarrar. Ela engoliu um grito e a garganta apertou-se-lhe com o esforço. Teve
de se forçar a mover-se lentamente e a não largar numa corrida. Já estava
perto. De repente, abateu-se sobre a sua cabeça o estrondo de um trovão. Nesse
preciso momento, algo lhe tocou nas costas. Ela gritou, virou-se e fugiu pelo
quarto, tropeçando na cadeira que se encontrava no caminho». In
Donna Woolfolk Cross, A Papisa Joana, 2000, Editorial Presença, 2010, ISBN
978-972-232-641-4.
Cortesia de EPresença/JDACT
Donna Woolfolk Cross, JDACT, Literatura, Vaticano,