«(…) Ellen ultimamente começara a perceber isso, confessou ela, adivinhando os pensamentos de Tom. Jack nunca tivera a companhia de outras crianças, ou, na verdade, de outros seres humanos, excepto a mãe, e o resultado era que estava crescendo como um animal selvagem. Apesar de tudo o que aprendera, não sabia lidar com as pessoas. Era por isso que estava ali em silêncio, que encarava fixamente os outros e apanhava o que queria. Ao dizer isso, ela pareceu vulnerável pela primeira vez. Desapareceu seu ar de inexpugnável auto-suficiência, e Tom a viu como uma mulher preocupada e mesmo desesperada. Pelo bem de Jack, ela precisava retornar à sociedade, mas como? Se fosse homem, poderia ter conseguido convencer algum lorde a lhe dar uma fazenda, sobretudo se mentisse de modo convincente e dissesse que estava voltando de uma peregrinação a Jerusalém ou a Santiago de Compostela. Havia algumas mulheres trabalhando na lavoura, mas invariavelmente eram viúvas com filhos crescidos. Nenhum lorde daria uma fazenda a uma mulher com um filho pequeno. Ninguém iria querer empregá-la para fazer qualquer tipo de trabalho, na cidade ou no campo; além disso, não tinha onde morar, e o trabalho não qualificado raramente era acompanhado por oferta de moradia. Ellen não tinha identidade. Tom sentiu por ela. Dera à criança tudo o que podia, e não era o bastante. Mas ele era incapaz de ver uma saída para o seu dilema. Por mais bonita, determinada e formidável que fosse, estava destinada a passar o resto dos dias escondida na floresta com o seu filho esquisito.
Agnes, Martha e Alfred voltaram.
Tom olhou ansiosamente para a filha, mas pelo seu jeito a pior coisa que lhe
acontecera fora ter o rosto esfregado. Durante algum tempo, o construtor ficara
absorto nos problemas de Ellen, mas agora se lembrou da sua situação difícil:
estava sem trabalho e seu porco havia sido roubado. A tarde estava acabando.
Começou a recolher as coisas que lhe tinham restado. Aonde estão indo?,
perguntou Ellen. Winchester, disse Tom. Ali havia um castelo, um palácio,
diversos mosteiros e, principalmente, uma catedral. Salisbury é mais perto,
disse Ellen. E da última vez em que estive lá a estavam reconstruindo...,
ampliando-a. O coração de Tom deu um pulo. Era aquilo que estava procurando. Se
ao menos pudesse arranjar um trabalho num projecto em andamento, acreditava que
um dia conseguiria se tornar mestre construtor. Como se vai para Salisbury?,
perguntou ele ansiosamente. No caminho que vieram, uns cinco quilómetros ou
pouco mais. Lembra-se de uma encruzilhada onde pegou a trilha da esquerda? Sim,
perto de um lago de água suja. Isso mesmo. A trilha da direita leva a
Salisbury. Eles se despediram. Agnes não gostara de Ellen, mas mesmo assim conseguiu
dizer graciosamente: Muito obrigada por ter ajudado a tomar conta de Martha. Ellen
sorriu e pareceu ficar melancólica quando eles partiram. Quando já haviam
caminhado alguns minutos, Tom olhou para trás. Ellen ainda os observava, de pé
na estrada, pernas abertas, protegendo os olhos do sol com uma das mãos; o
garoto esquisito estava ao seu lado. Tom acenou, e ela respondeu com outro
aceno. Uma mulher interessante, comentou ele com a esposa. Agnes nada disse.
Aquele menino era estranho, disse
Alfred. Caminhavam no sol outonal de fim de tarde. Tom gostaria de saber como
era Salisbury; nunca estivera ali. Sentiu-se excitado. Claro que seu sonho era
construir uma catedral desde os alicerces, mas isso quase nunca acontecia: era
muito mais comum encontrar uma velha edificação sendo melhorada, ampliada ou
parcialmente reconstruída. Mas isso já seria bastante bom para ele, desde que
lhe oferecesse a chance de ajudá-lo a um dia realizar seu objectivo. Porque
aquele homem bateu em mim?, quis saber Martha. Porque queria roubar o nosso
porco, respondeu Agnes. Devia ter um porco dele, disse Martha indignada, como
se só agora percebesse que o fora-da-lei tinha feito algo errado. O problema de
Ellen estaria resolvido se ela tivesse uma profissão, pensou Tom. Um pedreiro,
carpinteiro, tecelão ou curtidor não estaria na sua posição. Sempre poderia ir
para a cidade e procurar trabalho. Havia poucas artífices. Ela precisa é de um
marido, disse Tom em voz alta. Mas não vai ficar com o meu, disse Agnes
rispidamente.
O dia em que perderam o porco foi
também o último dia de temperatura amena. Passaram aquela noite num celeiro, e
quando saíram pela manhã, o céu estava da cor de um tecto de chumbo, e o vento
frio trazia lufadas de chuva. Desembrulharam o manto de tecido espesso,
feltrado, e o vestiram, apertando-o com força sob o queixo e puxando o capuz
bem para frente a fim de proteger o rosto da chuva. Puseram-se a caminho
melancolicamente, quatro fantasmas taciturnos metidos no temporal, os tamancos
de madeira espadanando água e lama ao longo da estrada cheia de poças. Tom
gostaria de saber como seria a Catedral de Salisbury. Em princípio, uma
catedral era uma igreja como outra qualquer, simplesmente a igreja onde o bispo
tem o seu trono. Na prática, porém, as catedrais eram as igrejas maiores, mais
ricas, mais grandiosas e elaboradas. Raramente um simples túnel com janelas. A
maioria se compunha de três túneis, um alto flanqueado por dois menores, como
cabeça e ombros, formando uma nave central com duas laterais. As paredes do
lado do túnel central eram reduzidas a duas linhas de colunas ligadas por
arcos, constituindo uma arcada. As duas naves menores eram usadas para procissões,
que podiam ser espectaculares nas catedrais, e proporcionavam espaço para
pequenas capelas dedicadas a santos da devoção particular dos crentes, o que
atraía importantes doações extras. As catedrais eram os edifícios mais caros do
mundo, muito mais do que palácios ou castelos, e tinham que ganhar o dinheiro
que custavam». In Ken Follett, Os Pilares da Terra, 1989, Editorial Presença, 2007,
ISBN 978-972-233-788-5.
Cortesia de EPresença/JDACT
JDACT, Ken Follett, Catedrais, Narrativa, Cultura,