Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Diz-se que a noite é sempre
boa conselheira, mas é também a coberto dela que se perpetram crimes, que se
contam segredos, que se perpetuam mistérios. Jantaram na mesa número 205 do
deck 14. Myriam quis que fossem ver a peça que estava em cartaz. Na verdade era
mais do que uma, pois chamava-se Musicais
da Broadway, um resumo das principais cenas e músicas de Cats, West Side Story, O Fantasma da Ópera
e outros clássicos renomados, da batuta de Andrew Lloyd Webber. Não era
obra que ficasse na retina, mas foi agradável. Uma espécie de pastiche de digestão fácil
porque afinal em férias não há porque se desgastar com dramas ou obras de
profundidade dramática excessiva. Recolheram ao quarto já passava das onze da
noite. Myriam estava feliz e era esse o objectivo. Estás bem, meu querido?,
perguntou-lhe. Pareces muito desligado hoje. Andas bem? Estou bem, Myr. Não te
preocupes. Falaste com o Ben esta noite? Falei, mentiu. Vou-lhe ligar novamente
à meia-noite, se não te importas. Hoje foi um dia importante para ele. Tão
tarde? E ainda mais em Jerusalém, censurou franzindo o cenho. É. Ele pediu. Está
bem. Mas não fiques uma hora ao telefone. Já sabes que tenho frio de noite.
Está descansada, querida. Será rápido.
A voz sumia-se cada vez mais. Não conseguira falar com o Ben Júnior. O telefone
estivera sempre desligado. O assistente não conseguira localizá-lo em lado
nenhum. Não estava na propriedade que os Isaac possuíam em Telavive, tão-pouco
apareceu na sede da empresa . Temia que o bilhete que recebera ao
pequeno-almoço estivesse relacionado com o desaparecimento do filho. Não fazia
ideia de quem o enviara, nem quem poderia estar ao corrente do Statu Quo. Fosse como fosse em
breve o saberia. Passou o dia a desconfiar de tudo e de todos. Dos empregados
sorridentes, dos restantes turistas, independentemente do género; só Myriam
escapava à suspeita. Perguntou-se centenas de vezes se o emissor da mensagem
estaria no barco, se estaria a observá-lo, se, se, se. Isto num homem que sempre
evitou os ses. No dia anterior aportaram em Livorno e visitaram Florença e
poderia muito bem ter sido aí que o interlocutor entrara, muito a tempo de sair
no dia seguinte, em Nápoles, aproveitando o corre-corre do navio, de porto em
porto na costa ocidental italiana. Era uma agulha num palheiro no meio de três
mil pessoas. Beijou Myriam carinhosamente na testa e saiu para a piscina.
Não demores, advertiu Myriam antes
de ele bater gentilmente à porta. Não sabia que outra resposta dar se não um Será rápido, mas a verdade é que
não sabia para o que ia. A agenda mental normalmente assinalava sempre qualquer
coisa, uma reunião, um telefonema, um almoço, comprar um presente, uma flor
para Myriam, mas, neste ponto, a nove minutos da meia-noite, estava em branco. Caminhou
pelo corredor do deck 14 em direcção ao elevador. Subiria um lanço e dali à
piscina não levaria mais de dois ou três minutos no seu passo lento e nervoso.
As pernas tremiam-lhe como se pressentissem um abismo. Passou por alguns
turistas que cambaleavam à procura do equilíbrio no regresso ao quarto que não
lembravam onde ficava. Os empregados arrumavam a desordem do dia, o lixo que os
impudicos lançavam ao chão sem culpa, beatas de cigarro, copos de plástico,
pedaços de comida.
Perto
da piscina o movimento era menor, estranhamente, ou talvez não. Bem Isaac deu por
si ofegante. Não fora grande caminhada, nem havia subidas ou descidas íngremes.
Não estava ninguém. A água ondulava ao sabor do gigantesco navio. Iluminação
submersa pintalgava a água de um azul-vivo, cujo movimento ondeante a
transformava num organismo com vida. Não viu vivalma. Estranho. Mas nada
naquele dia fora normal. Consultou o relógio. Onze e cinquenta e sete. Os
segundos matutavam na cabeça dele ou seria o coração a latejar nas veias que marcava
o ritmo da inquietação. Os três minutos pareceram seis e depois doze, até que
chegou a meia-noite e..., nada aconteceu. Verdade que era apenas a hora do seu
relógio, talvez ainda não fosse meia-noite no relógio do outro interveniente,
fosse ele ou ela quem fosse. Olhou ao seu redor e não sentiu qualquer movimento.
A noite estava fria, desagradável. O navio deslizava lentamente para sul,
abrindo caminho pelas águas do Tirreno. Dois minutos depois da hora, segundo o
seu relógio, ouviu um disparo oco. Não saberia apontar a proveniência dele mas é
certo que o que quer que fosse não passou nem perto de si. De qualquer forma
sentia-se demasiado exposto. Momentos após o disparo e as dúvidas viu algo a
descer no céu, lentamente. Estava a cerca de 50 metros de altura e descia em
direcção à piscina. Ao princípio não conseguiu descortinar o que era. Um
objecto voador não identificado. Aos trinta metros conseguiu dar um nome ao
objecto. Chamava-se paraquedas. Imune à observação atenta de Ben Isaac, o paraquedas
manteve a sua descida serena». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada,
Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.
Cortesia de PEditora/JDACT
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