A Idade Média não foi apenas uma época de ortodoxia triunfante.
«(…) O que na Idade Média torna fascinante o Apocalipse é a
ambiguidade substancial do seu capítulo XX. Interpretado à letra, este capítulo
diz que, a certo ponto da história da humanidade, Satanás fica preso por mil
anos. Durante todo o período em que está preso, realiza-se na Terra o Reino de
Cristo. Depois, o Diabo é libertado por um certo tempo e, finalmente, de novo
vencido. Nessa altura, Cristo dará início, no seu trono, ao Juízo Universal, a
história terrena terminará (e já estamos no começo do capítulo XXI) e haverá um
novo Céu e uma nova Terra, ou seja, o advento da Jerusalém Celeste. Numa
primeira leitura, devemos esperar uma segunda vinda do Messias e mil anos de
idade do ouro (prometida, por outro lado, por muitas religiões antigas) e um preocupante
regresso do demónio e do seu falso profeta, o Anticristo (como a tradição tenderá
gradualmente a chamar-lhe), e finalmente o Juízo e o fim dos tempos. Mas Agostinho
sugere outra leitura: o milénio representa o período que vai da Encarnação ao
fim da História e é, pois, o período que os cristãos já estão a viver. Neste
caso, a espera pelo milénio é substituída por outra; a espera pelo regresso do
demónio e, depois, pelo fim do mundo.
A história do Apocalipse na Idade Média move-se entre estas duas
possíveis leituras, numa alternância de euforia e disforia e com um sentimento
de perene expectativa e tensão. Porque ou Cristo chega para reinar durante mil
anos na Terra ou vem para pôr termo aos actuais mil anos; mas, em qualquer
caso, virá. O resto são discussões sobre os tempos do calendário místico. Todas
as heresias medievais, especialmente as que nascem não só de um impulso religioso
como também da impaciência acerca das injustiças da sociedade, têm uma raiz
milenarista. Enquanto as inquietações anteriores ao ano 1000 eram suportadas passivamente
por uma humanidade abandonada a si própria, no novo milénio a sociedade
organiza-se e as cidades definem-se como comunas independentes; desenha-se toda
uma gama de diferenças sociais: ricos, poderosos, guerreiros, clero, artífices,
camponeses e massas sub-proletárias. Estas massas começam a ler o Apocalipse de
um modo activo, como se ele dissesse respeito a um futuro melhor que elas
obtivessem com um empenhamento directo. Não são movimentos sociais organizados
para fins exclusivamente económicos, mas reacções anárquico-místicas, com
cambiantes imprecisas em que rigorismo e devassidão, sede de justiça e
banditismo vulgar se reúnem sob uma matriz visionária comum. Estes movimentos
manifestam-se, principalmente, em áreas gravemente envolvidas num processo de
rápida mutação económica e social. Camponeses sem terra, operários não
qualificados, mendigos e vagabundos formam um elemento instável; qualquer estímulo
perturbante e excitante, o chamamento para uma cruzada, uma peste, uma escassez,
provocava reacções violentas e suscitava habitualmente a formação de um grupo
que ficava à espera, com frequência não meramente passiva, de transformações
radicais sob a chefia de um guia carismático.
Deste modo temos, século a século, grupos de homens irrequietos e
violentos, de entusiastas dispostos ao extremo sacrifício, agitados por
esperanças mirabolantes. O milenarismo, com a expectativa de uma idade de ouro,
é a forma medieval da crença no advento de uma sociedade sem classes, em que
não haja reis, príncipes nem senhores. E assim, por via dos ecos apocalípticos,
se inserem tendências populisto-comunistas nos mais diversos movimentos do
povo, de Cola di Rienzo a Savonarola. Seguindo a pregação milenarista de
Gioacchino da Fiore, e em espírito apocalíptico, apoderam-se da palavra
joaquimita os rigoristas franciscanos, os chamados irmãozinhos, e joaquimitas
serão no século XIV frei Dolcino e os seus sequazes, e na origem de tais movimentos
estão sempre as premissas fundamentais sobre o fim do mundo a breve prazo, o
advento de uma era do Espírito Santo e a identificação do pontífice e dos príncipes
da Igreja com o Anticristo». In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros,
Cristãos, Muçulmanos, Publicações
dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.
Cortesia PdQuixote/JDACT
JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,