«(…) Veja só, disse Braggadocio, aquilo à esquerda ainda são ruínas romanas, quase ninguém lembra que Milão também foi capital do império. Por isso, nelas não se toca, mesmo que ninguém esteja dando bola para esse tipo de coisa. Mas aquelas atrás do estacionamento ainda são casas destroçadas pelos bombardeios da última guerra. As casas destroçadas não tinham a vetusta tranquilidade das ruínas antigas, já reconciliadas com a morte, mas despontavam sinistras entre seus vazios não assossegados, como se doentes de lúpus. Não sei bem por que ninguém tentou construir nesta área, dizia Braggadocio, talvez seja tombada, talvez o estacionamento renda mais para os proprietários do que construir casas para alugar. Mas porque deixar os vestígios dos bombardeios? Este largo me dá mais medo que a rua Bagnera, mas é bonito porque me diz como era Milão depois da guerra, nesta cidade sobraram poucos lugares que fazem lembrar como ela era quase cinquenta anos atrás. E é a Milão que procuro reencontrar, aquela onde vivi na infância e na adolescência, a guerra acabou quando eu tinha nove anos, e de vez em quando, de madrugada, ainda tenho a impressão de ouvir o barulho das bombas.
Mas ficaram só as ruínas: olhe
ali na esquina da rua Morigi, aquela torre é do século XVII, nem as bombas a
derrubaram. E por baixo, venha cá, ainda desde o começo do século XX existe
aquela taverna, a taverna Moriggi, não me pergunte porque a taverna tem um g a mais que a rua, mas a prefeitura é
que deve ter errado quando pôs as placas, a taverna é mais antiga, ela é que
deve ter razão. Entrámos num ambiente de paredes vermelhas e tecto descascado,
de onde pendia um velho lustre de ferro batido, com uma cabeça de veado no balcão,
centenas de garrafas de vinho empoeiradas ao longo das paredes, mesinhas de
madeira (ainda não era hora do jantar, disse Braggadocio, e estavam sem toalha,
depois seriam colocadas aquelas de xadrezinho vermelho, e para comer era
preciso consultar aquela lousinha escrita à mão, como nos restaurantes
franceses). À mesa havia estudantes, algumas figuras da velha boémia, com
cabelos compridos, mas não de sessenta e oito, e sim de poeta, daqueles que
antigamente usavam chapéu de aba larga e gravata à Lavallière, além de uns
velhos já meio embalados, que não se entendia se estavam lá desde o começo do século
ou se eram contratados pelos novos donos como figurantes. Petiscamos de um
prato de queijos, frios, lardo de Colonnata, e bebemos um merlot, bom de
verdade. Bonito, né?, dizia Braggadocio. Parece atemporal.
Mas porque é atraído por essa Milão
que já não deveria existir? Já lhe disse, quero poder ver aquilo que quase não
lembro mais, a Milão do meu avô e do meu pai. Tinha começado a beber, seus
olhos haviam ficado brilhantes, enxugara com um guardanapo de papel um círculo
de vinho que se formara na mesa de madeira antiga. Minha família tem uma história
triste. Meu avô era alto dirigente no infausto regime, como se costuma dizer. E
no dia 25 de Abril foi reconhecido por um partisan enquanto tentava escapulir não
longe daqui, na rua Cappuccio; foi apanhado e fuzilado, logo ali na esquina.
Meu pai ficou sabendo disso com atraso porque, como era fiel às ideias do meu
avô, em 1943 tinha se alistado na Décima Flotilha MAS, foi capturado em Salò e
mandado para o campo de concentração de Coltano, onde ficou um ano. Escapou por
pouco, não encontraram nenhum verdadeiro motivo de incriminação, além disso, já
em 1946 Togliatti tinha dado o primeiro passo para a amnistia geral, contradições
da história, os fascistas reabilitados pelos comunistas, mas Togliatti talvez
tivesse razão, era preciso voltar à normalidade a qualquer custo. Mas a normalidade
era que meu pai, com aquele passado e a sombra do pai, não achava trabalho e
vivia sustentado pela minha mãe, que era costureira. Assim foi-se entregando
aos poucos, bebia, e dele eu lembro só o rosto cheio de veiazinhas vermelhas e
os olhos lacrimejantes, enquanto me contava suas as obsessões. Não procurava
justificar o fascismo (nessa altura não tinha mais ideais), mas dizia que para condenarem
o fascismo os antifascistas tinham contado muitas histórias horrendas. Não
acreditava nos seis milhões de judeus mortos nas câmaras de gás. Quer dizer, não
era daqueles que ainda hoje afirmam que não houve Holocausto, mas não confiava
na narrativa construída pelos libertadores». In Umberto Eco, Número Zero,
2015, Gradiva Publicações, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-616-643-4.
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