quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Número Zero. Umberto Eco. «Naquele momento surgia da curva uma mulher com um carrinho de bebê. Irresponsável ou mal informada. Comentou Braggadocio. Se eu fosse mulher, não passaria por aqui…»

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«(…) Confessei sem jeito que tinha olhado para ela só de relance, como disse, das mulheres quero distância. Ele sacudiu meu braço: Não fique dando uma de gentleman, Colonna. Eu bem que vi você olhando disfarçadamente para ela. Na minha opinião, é do tipo que topa. A verdade é que todas topam, é só saber pegar do jeito certo. Um pouco magra demais para o meu gosto, aliás, não tem peitos, mas, enfim, poderia dar pé. Tínhamos chegado à rua Torino e, à altura de uma igreja, ele me fez virar à direita para entrarmos numa ruazinha que tinha uma curva no cotovelo, mal iluminada, com algumas portas fechadas sabe-se lá desde quando, sem nenhum comércio, como se tivesse sido abandonada há tempos. Parecia pairar ali um cheiro de bolor, mas devia ser apenas sinestesia, por causa das paredes escalavradas e cobertas de grafites desbotados. No alto, um cano soltava fumaça, e não dava para entender de onde vinha porque até mesmo as janelas de cima estavam fechadas como se ali não morasse mais ninguém. Talvez o cano viesse de alguma casa que dava para outro lugar, e ninguém se incomodava por esfumaçar uma rua abandonada. É a rua Bagnera, a mais estreita de Milão, não tanto como a rue du Chat-qui-Pêche em Paris, onde quase não conseguem passar duas pessoas. Hoje se chama rua Bagnera, mas antigamente se chamava viela Bagnera, e antes ainda, viela Bagnaria, por causa de alguns banhos públicos da época romana.

Naquele momento surgia da curva uma mulher com um carrinho de bebê. Irresponsável ou mal informada. Comentou Braggadocio. Se eu fosse mulher, não passaria por aqui, principalmente no escuro. Você pode ser esfaqueado, assim sem mais nem menos. Seria uma pena porque a gatinha não é de se jogar fora, típica mãezinha disposta a dar para o encanador, olhe para trás, veja como ela rebola. Aqui aconteceram assassinatos. Por trás dessas portas agora trancadas ainda deve haver porões abandonados e talvez passagens secretas. Aqui, no século XIX, um tal Antonio Boggia, sujeito sem eira nem beira, atraiu um contador para um desses porões, com a desculpa de fazer a revisão das contas, e lhe deu uma machadada. A vítima consegue se salvar, Boggia é preso, julgado louco e internado no manicómio por dois anos. Mas, assim que fica livre, sai de novo à cata de pessoas ingénuas e endinheiradas, que ele atrai para o seu porão, rouba, mata e enterra no mesmo lugar. Um serial killer, como se diria hoje, mas um serial killer imprudente, porque deixa vestígios das suas relações comerciais com as vítimas e no fim acaba preso, a polícia escava o porão, encontra cinco ou seis cadáveres, e Boggia é enforcado lá pelos lados da Porta Ludovica. A cabeça dele foi entregue ao Departamento de Anatomia do Ospedale Maggiore (estávamos nos tempos de Lombroso, quando os sinais da delinquência hereditária eram procurados nos crânios e nos traços fisionómicos). Depois parece que essa cabeça foi enterrada em Musocco, mas vai saber, aqueles restos eram material cobiçado por ocultistas e satanistas de todas as tribos... Ainda hoje, aqui dá para sentir a presença de Boggia, parece que estamos em Londres, no tempo de Jack, o Estripador, eu não gostaria de passar a noite aqui, no entanto me sinto atraído. Volto sempre, às vezes marco alguns encontros aqui.

Saindo da rua Bagnera desembocamos numa praça, a Mentana, e Braggadocio me fez enveredar por certa rua Morigi, também bastante escura, mas com algum comércio pequeno e belos portais. Chegamos a um largo com uma ampla área de estacionamento circundada por ruínas». In Umberto Eco, Número Zero, 2015, Gradiva Publicações, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-616-643-4.

Cortesia de GradivaP/JDACT

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