«[…]
Idílio
«Quando,
pela moléstia de peito que então sofria, me desenganaram de que não tinha
remédio enquanto estivesse em Chelas, e havia inteira impossibilidade para mudar
de sítio»
«Cordeiros meus, que em tempo mais ditoso
Fazíeis a delícia dos
meus dias,
Escutai os gemidos
lastimosos
Com que Lília, nas
bordas do sepulcro,
Vos envia um adeus,
com que saudade!
Passou ligeiro o
tempo em que, contentes,
No mais alto do
monte, consagrado
Aos cânticos das
Musas, felizmente
Vos nutríeis de um
pasto que regava
A fresca Aurora com a
porção mais pura
Do c que dedica ao
filho amado.
Gostáveis um licor
sacro e sublime,
Que a alma inflama
dos cândidos Pastores,
E os obriga a cantar
suavemente
Seus amores nas
flautas sonorosas.
Que pacíficos gostos
eu lograva,
(Ó milagres de
Délio!) quando apenas
Da minha pobre avena,
mansamente
Os inocentes colos
estendendo,
Sentir parecíeis vós
esse meu canto,
Parecíeis aplaudir os
meus acentos,
Em que a Amor
perdoava as travessuras
Com que afligia os
míseros pastores!
Outras vezes, que a
Amor chamei tirano,
Que só cantei as
graças da inocência,
Com que pressa,
Cordeiros, me cercáveis,
E com a paz que meus
versos inspiravam
Entre os braços do
sono vos perdíeis!
Ó memória suave, onde
me levas!...
Tais como as densas
nuvens que no Inverno
As estrelas aos olhos
vão roubando,
A distância me faz
ver esse tempo,
Ditoso, mas perdido,
ir já cedendo
Ao tirano poder do
esquecimento.
Neste vale cruel,
onde a desgraça
Ordena que termine os
tristes dias,
Escuto só os ventos
rugidores,
Arrancando da terra
os verdes freixos,
Que abrigavam com as
frondosas ramas
Comigo a terna
Márcia, a cara Tirce.
O rebanho de Agrário
pelos montes
Somente deixa ouvir
tristes balidos,
Disperso, quase
extinto! Com que pena
Meus olhos tal objeto
consideram!...
No espaço imenso dos
passados séculos,
Com passos apressados
se sepulta
O tempo, que não
cessa. A horrenda morte
Com que aspeto a meus
olhos (tristes olhos!)
Os descarnados ossos
apresenta!
Levanta com furor a
enorme foice,
(Que susto!... ó
Céus, valei-me!...) que pendente
Vejo sobre a
cabeça... Mostra, irada,
O voraz apetite com
que esperava
Fazer presa em meus
dias brevemente!
Cordeiros, minha doce
companhia,
Com quem já reparti
os meus prazeres,
Quando da morte o
lívido semblante
Vos mostrar com
horror minha figura,
E não puder a mão,
trêmula e fria,
Sustentar por mais
tempo o meu cajado,
(Que jamais vos
serviu para castigo,
Que à fonte vos
guiava, que ao redil
Vos levou tantas
vezes ao descanso)
Ah! não deixeis que
algum Pastor profano
À minha Tirce o
roube; a minha lira
Nele deixo pendente
de um grilhão
Que o maligno Cupido,
na cabana
Da mesma Tirce amada,
sutilmente
Me trocou pela minha
liberdade.
Nos versos meus, que
eu confiei dos troncos,
Deixo a fúnebre
história dos meus males.
Não consintais que o
musgo, o tempo, a sorte
A memória sepultem do
que eu sinto,
Antes que os claros
olhos do meu Nume
Derramem, quando os
lerem, terno pranto,
E que à memória da
constante Lília
Pague Amor os
extremos que lhe deve.
Ah! possa a mão de
Tirce ainda algum dia
Ao querido Pastor, ao
Pai amado,
Com os dons que lhe
restam, de uma filha
Compensar os suspiros
que hoje exala!
Oh! feliz sorte a
vossa, triste a minha,
Cordeiros inocentes,
que aos desastres
Insensíveis viveis,
que da saudade
Não provais a
violência, o golpe amargo!
Não sofreis o poder
fero e tirano
Deste duro farpão,
que rasga o peito,
Monstro que a alma
devora sem piedade.
Ficai sempre felices,
sempre alegres,
Que eu, sem ver os
objetos que adorava,
Acabo... ó Céus!...
meus dias... na amargura!...
Razão, por piedade,
esconde
O que eu dentro de
alma sinto;
Se amor se mostra em meus
lábios
Faze crer que sempre
minto.
Não quero que hoje a
verdade
Se oponha às leis da
razão;
Triunfe a modéstia
austera,
Gema embora o
coração.
Não acenda um só
suspiro
Chama que devo
apagar;
Siga-se à dor o
silêncio:
Vencer é saber calar.
Quantos males evitara
Esse incauto
Prometeu,
Se na férula
escondido
Ficasse o fogo do
Céu!...
Porque se ama, ou se
não gosta,
Inda está mal
definido;
O acaso, o fado, a
estrela
Forjam armas a
Cupido.
Se com desdéns
recompensa
Zelina meu vivo
ardor,
Não tenho de que
queixar-me
Não depende dela
amor.
Por ela morro; e não
pago
De Alcina os ais com
os meus.
Ninguém a razão me
aindague,
Procure o enigma nos Céus».
[…]
Poemas de Leonor Almeida Portugal Lorena Lencastre, (1750 – 1839), in ‘Poemas de Alcipe’
JDACT
A Arte, Encantamento, Fernando Pessoa, JDACT, Marquesa de Alorna, MLAC, Poesia, Alcipe,