«(…) Ambos pareciam educados e
bem articulados, nenhum dos dois era inferior ao outro. Talvez fosse uma
diferença de religiões. Eles nunca comentavam isso, mas vivíamos mudando
constantemente de casa. Meu pai tinha um bom conhecimento de cavalos e, na
minha tenra juventude, ele conseguiu encontrar emprego e começou a me ensinar o
seu ofício de treiná-los. Mas, desde que me lembro, minha mãe vivia doente. E, enquanto
eu crescia, ela ficava mais e mais doente, até a maior parte do nosso dinheiro
ser gasto com seus remédios. Não muito tempo após chegarmos a Las Conchas, ela
foi acometida por uma nova enfermidade que a deixou acamada. Minha mãe não
tinha mais condições de viajar para longe, e nem meu pai nem eu conseguíamos
encontrar emprego. Nossas economias logo desapareceram e, sem uma família a
quem recorrer, nos tornamos mendigos. Era uma história triste e preferi não contá-la
inteira, pois, quando pensava na minha mãe e no meu pai, a dor de perdê-los alimentava
o cancro de veneno que era o juramento de vingança que trazia comigo. Aos meus
companheiros, contei apenas que um infortúnio havia me roubado meus pais. Cheios
de vinho e sonolentos, os homens faziam pilhérias e gargalhavam, e eu, sentado
com eles, me sentia parte do seu grupo. Na ausência de meus pais, sentia-me feliz
por estar naquele barco. Vivenciei um surto de lealdade por nosso louco capitão
e pensei que, no futuro, eu realmente tentaria cuidar dele. Esse dia chegou
mais cedo do que eu esperava. O dia em que deixei minha juventude para trás e
matei um homem.
Zarita
Você ordenou a prisão do meu
criado Bartolomé. Pude ouvir claramente a voz de meu pai, embora a porta do seu
gabinete estivesse fechada. A resposta do padre Besian foi mais baixa, porém
audível. Ele foi desrespeitoso a ponto da blasfémia. Bartolomé não faz ideia do
que os seus actos poderiam ser interpretados desse modo. Dei um leve empurrão na
Serafina em direcção à cozinha. Vá cuidar dos seus afazeres. Vou juntar minha
voz aos argumentos do pai. Tenho direito de prender quem eu achar que pode ser
um herege ou que possa estar conspirando contra a Santa Madre Igreja. O padre
Besian e meu pai estavam de pé, encarando-se, quando entrei no aposento.
Encontravam-se tão envolvidos na discussão que não notaram a minha presença. O
rapaz que prendeu é um simplório que nem faz ideia do que seja um herege. Ontem,
meus homens lhe perguntaram se alguma vez nutrira maus pensamentos contra
sacerdotes da igreja e ele respondeu que sim. Bartolomé concordaria com
qualquer coisa que alguém dissesse, vociferou em resposta meu pai, um homem
nunca dado à paciência. É da sua natureza fazer isso. Ele não tem pensamentos
próprios e procura agradar a todos que encontra. Além do mais, prosseguiu o
padre, quando indagado se alguma vez planeou atacar o padre durante a missa,
ele disse que, às vezes, nutria essa ideia ao frequentar a cerimónia religiosa.
Meu pai gargalhou rudemente.
Os sermões de certos padres
talvez mereçam tal reacção. Advirto-o a ter cautela com o que diz. Havia
rispidez na voz do padre. Eu já lhe disse, o rapaz é um simplório! Ele mal sabe
se vestir sem ajuda. Ele não é mais capaz de conspirar contra a igreja do que
consegue contar de um a cem. Certamente deve ter percebido isso. O mal tenta
encontrar um lugar até mesmo nas pessoas mais simples. Ele é apenas um garoto!,
explodiu o pai, exasperado. Com quase 20 anos de idade, o que o torna um homem,
mas eu me lembrarei do que alegou, quando for feito o interrogatório. Interrogatório?
Meu pai pareceu aterrorizado. Certamente não pretende interrogar o rapaz num julgamento.
Se eu ficar insatisfeito com as suas respostas iniciais, sim. Mas, se sabe
quais serão suas respostas iniciais, porquê continuar... O pai parou, como se
começasse a entender a importância do que acabara de ouvir. Olhou o padre mais
atentamente. Que jogo pretende fazer aqui, para usar o rapaz como peão? O padre
Besian hesitou. Então disse: Pode ser que a nossa investigação dessa primeira
pessoa acusada de transgressão induza os habitantes a nos levar a outros». In
Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014,
ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,