A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491
«(…)
Por duas vezes, enganou a morte, afirmou, enquanto abria a minha boca à força e
despejava água pela minha garganta abaixo, pois o certo era ter morrido aqui
por falta de água. Subiu novamente e voltou com um pedaço de pão e uma pele
cheia de um azedo vinho tinto. Quebrando o pão em pedaços, molhava-o no vinho e
observava enquanto eu tentava engolir. Grunhiu ao me ajudar a ficar de pé. Talvez
você tenha nascido sob uma estrela especial.
Uma pequena galé mercante
espanhola fora avistada no horizonte. O tenente não se importava se eu estava
vivo ou não: mesmo se estivesse semimorto, ele teria me jogado por cima do
costado, mas agora via uma possibilidade de me trocar por alguma bebida alcoólica.
Um barril de vinho barato foi o quanto eu valia. E, mesmo assim, com relutância.
Foi mais com um espírito de apaziguamento que o capitão da galé concordou com a
troca, pois os soldados mantiveram as suas armas apontadas para o barco menor.
Bem afundada na água, sem alojamentos cobertos para os ocupantes, a galé era
dotada apenas parcialmente de convés, com um grosseiro pano de vela mastreado
como toldo na popa, fechado de ambos os lados para protecção contra a fúria dos
elementos. Havia um canhão de pequeno porte montado na frente, e, embora poucos
tripulantes carregassem facas nos cintos, eles seriam facilmente dominados por
um navio maior equipado com canhões e homens armados. A negociação foi feita em
minutos, e o destino decretou que eu me tornasse um rato de galé. O soldado
ruivo foi-me buscar para me fazer subir ao convés. A escotilha se abriu novamente,
e o sol brilhou no meu rosto. Olhei para cima com os olhos semicerrados enquanto
a corda descia. Se não consegue subir sozinho pela corda, segure na ponta que
eu puxo, sugeriu ele, mas não de um modo indelicado. Cambaleei adiante para
agarrar a ponta oscilante da corda. Algo cintilou na luz.
Presa entre as amarras de um
fardo havia uma faca. Era comprida e de lâmina estreita: do tipo que uma mulher
usaria para descascar legumes. Posteriormente, descobri que era do tipo usado
por funcionários do governo para cortar os cordões durante o processo de afixar
o selo da aduana em mercadorias tributáveis. A faca devia ter ficado presa
enquanto a carga era inspeccionada antes de ser levada para o navio. Alcancei-a,
e, num instante, estava na minha mão. Mas onde escondê-la? Curvando-me para
bloquear a vista de quem estivesse vigiando de cima, cortei a parte interna do
cós da calça e enfiei a faca lá dentro. Uma corda foi colocada do navio militar
à galé para transferir o barril de vinho. Uma ponta de uma segunda corda foi
amarrada na minha cintura e a outra ponta foi presa à primeira. Então fui
jogado por cima do costado. Os tripulantes da galé me puxaram através do espaço
vazio, mas eu estava fraco demais para subir pela corda até ao barco deles. O
navio soltou sua ponta da corda, e eu teria sido colhido pela contracorrente,
mas ouvi uma voz gritar da galé: Puxem ele! Puxem ele! Engasgando e tossindo,
pousei na larga plataforma da popa da galé. O homem que dera a ordem se
aproximou de mim. Ele era uma estranha visão, vestido com camisa, calções e
perneiras pretas encimados por uma jaqueta justa azul-pavão com três-quartos de
comprimento, bordada abundantemente com fios de prata». In Theresa Breslin, Prisioneira
da Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.
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