«(…) Mas, ao mesmo tempo, Varnhem representa um terço do nosso património em comum, um terço que agora você acaba de tirar de Eskil. O que não consigo entender é como você foi capaz de fazer uma coisa dessas, mesmo que tivesse direito a fazê-lo. Vamos andar devagar, na direcção das brincadeiras, para não ficarmos aqui quietos, como se déssemos a entender que estamos zangados um com o outro. Eu vou explicar tudo, disse ela, oferecendo o braço para ele. Magnus olhou em volta preocupado, reconheceu que ela tinha razão, sorriu com esforço e pegou-a pelo braço. Bem, disse ela, hesitante, após uns segundos. Vamos começar pelas coisas terrenas, as que mais enchem a sua cabeça neste momento. Evidentemente, vou levar para Arnas todos os animais e os servos. Varnhem tem, sem dúvida, as melhores construções, mas Arnas, por isso mesmo, vai possibilitar que a gente construa a partir do terreno, especialmente agora, quando vamos receber tantas mãos para trabalhar mais. Dessa maneira, vamos ter um lugar melhor para morar, em especial durante o Inverno. Mais animais significam mais barricas de carne salgada e mais peles, que agora já podemos mandar para Lõdõse de barco. Você sempre quis muito negociar com Lõdõse, e isso a gente poderá fazer a partir de Arnas, com muito mais facilidade, tanto no Inverno quanto no Verão. Isso seria mais difícil de fazer a partir de Varnhem. Magnus andava ao seu lado, silencioso e inclinado para a frente, mas ela viu que eles e tinha acalmado e começava a escutar com interesse, e então concluiu que não era mais uma questão de guerra com palavras. Viu tudo bem claro diante de si, como se tivesse levado muito tempo para planear as coisas, quando, na verdade, a ideia toda não tinha mais do que uma hora de vida.
Mais peles e mais barricas com
carne salgada para Lõdõse significavam mais moedas de prata, e mais moedas de
prata significavam mais sementes. Mais sementes significavam que mais servos
poderiam conquistar a sua liberdade através da preparação de novos campos para
sementeira, de empréstimos em sementes pagas pelo dobro em centeio que,
mandadas para Lõdõse, seriam trocadas por mais moedas de prata. E, então, seria
possível encomendar as muralhas que Magnus sempre havia pensado em erguer, já
que Arnas era difícil de defender, em especial durante o Inverno, quando o gelo
facilitava a passagem.
Através da unificação de todos os
esforços em Arnas, em vez de os partilhar por dois lugares, seria possível para
eles dois ficarem mais ricos, com todos os terrenos novos compondo uma
propriedade maior, edificar um lar mais quente e seguro e deixar para Eskil uma
herança maior do que se poderia imaginar antes. Quando chegaram bem na frente
da multidão, tiveram que forçar a passagem, é claro, e, sem dar quaisquer
sinais, Magnus se manteve silencioso e pensativo. Sot chegou aos pulos,
trazendo Eskil nos braços, e levantou-o diante de si para que o povo pudesse
ver as roupas dele e que, com ele nos braços, também ela, uma escrava, tinha direito
a forçar a passagem, e aí o garoto pulou para o chão e colocou-se em frente da
mãe que suavemente colocou suas mãos nos seus ombros, acariciou sua face e
corrigiu a posição do gorro cheio de penas. Os artistas diante deles estavam
vestidos com roupas engraçadas, de cores fortes e com pequenas campainhas
penduradas nas pernas e nos punhos, de modo que todos os seus movimentos se
misturavam com o som das campainhas. Nesse momento estavam formando uma pirâmide
humana, e, com um garoto muito pequeno, talvez um pouquinho mais velho do que
Eskil, no final, lá bem no alto e sozinho no topo. O povo gritava alto, de
terror e deslumbramento, e Eskil apontava o dedo insistentemente e dizia que
queria ser artista, o que levou seu pai a explodir numa sonora e surpreendente
gargalhada. Sigrid olhou disfarçadamente para ele e pensou que com aquela
gargalhada o perigo já havia passado. Magnus descobriu que ela tinha olhado
furtivamente e ainda sorria quando ele se inclinou para a frente e a beijou na
face. Você é, na realidade, uma mulher especial, Sigrid, sussurrou ele, sem
sinal de raiva na voz. Pensei no que falou e você tem razão em tudo». In Jan
Guillou, A Caminho de Jerusalém, As Cruzadas, Bertrand Brasil, 2002, ISBN
978-852-860-896-0.
Cortesia de BertrandB/JDACT
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