O Sapateiro…
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Haviam baixado os capuzes, sem receio de serem reconhecidos, Telo porque
Acabava a leitura, o celebrante beijava o missal e, ajudado pelos acólitos,
tornava a sentar-se, voltavam-se os olhos para o púlpito onde surgia o padre
Luís Álvares com a sua estola preta, aquietava-se a assembleia na contenção do mexer
e do arfar. O pregador ajoelhara breves segundos a concentrar-se na oração e
logo, levantando-se, chicoteou em voz poderosa o ar e as almas com o latim do
mote: Domino Deo nostro justitia, nobis autem confusio faciei nostrae... Escolhia
versículos da Baruch referentes à provação de Judá aquando da conquista de
Jerusalém por Nabucodonosor e do cativeiro de Babilónia... Ao Senhor nosso Deus
a justiça, a nós porém a confusão dos nossos rostos, como este dia a todo Judá,
aos que moram em Jerusalém, aos nossos reis, aos nossos príncipes, aos nossos sacerdotes,
aos nossos profetas, aos nossos pais... e, colocando teatralmente o antebraço
esquerdo no bordo do balcão e olhando a baixo aos olhos para ele erguidos,
falou de que, assim como Deus deve ser o fim último e principal de nossas
esperanças, é maldito o homem que põe esperança no homem... e bem o vedes nesta
miséria e desaventura presente..., como tão em breve acabaram tantas esperanças
de tantos senhores, de tantos morgados, de tantos ofícios, de tantas privanças,
de tantas valias e, perdoai-me que isto é acabado, de tantas loucuras, de
tantas meninices, de tão grandes brios, soberbas, mentiras, de tantos nadas...,
que tudo ao fim nisso se resolveu...
Esperanças
certas só em Deus e na medianeira a Virgem sua mãe... E, olhos e mãos erguidos
ao Céu das abóbadas, invocou a Senhora, refúgio, alívio, consolação dos males
que afligiam o reino e exortou o povo de Deus a saudá-la rezando Ave, Maria... Quando
o sussurro da prece por todo o templo se extinguiu, repetiu o orador o mote
latino do exórdio... Aí está o osso do discurso, pensou Savachão. Ah!
Negra alma minha, que no momento em que devia cobrir a cara de vergonha, no
orgulho da chamada serenidade real não se me abre o coração, não geme esta
rocha e se rasga a fonte dos olhos! Como mestre-escola, ponho-me a discretear
sobre a fábrica do sermão..., friamente, enquanto à minha volta... Não vês, não
ouves como esta pobre gente chora as vidas espedaçadas por ti?... E eis-me a
reconhecer, passo a passo, os caminhos retóricos do orador. Não está ele
falando das adversidades de Judá? Não se adivinha o propósito? ..., permitiu
Deus que aquela sua mimosa cidade de Jerusalém e o templo tanto seu amado que
lhe chamava o querido das meninas dos seus olhos..., puderam tanto os pecados
que deu licença às nações bárbaras entrassem a cidade, profanassem o santuário,
não deixassem pedra sobre pedra e levassem consigo para Babilónia, manietados
com desonra, nobres fidalgos do reino, cativos, em servidão dura e espantosa, e
depois que lá se viram na terra dos inimigos, com braga e adobes nos pés, sem camisa
nem capote, com almofaça nas estrebarias dos bárbaros... Mero tópico. Logo
cotejará com o que está vivendo este reino. O próprio auditório já o adivinhou,
que se lhe marejam de lágrimas os olhos. E tu, pregador, notaste-o..., para
vós, rei dom João primeiro, de gloriosa memória... Tem piedade! Não!...». In Fernando
Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,