segunda-feira, 25 de abril de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Vai ser difícil entrar disse Telo. O povo já engrossa cá fora. Avançaram por entre as gentes que cada vez mais se apinhavam. Vinha de dentro o cantochão dos frades: deixara crescer uma barba…»

 

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O Sapateiro…

«(…) O trono..., pois eu tenho nesse meu coração um trono para ti. Savachão beijou-a. Não te disse o meu nome nem to vou dizer, que tenho vergonha. Mas gostava que tu me pusesses um especial, só para ti..., o nome de uma flor... Violeta, o perfume mais simples e mais fino... Está aí à porta o Outono disse João. Seria melhor aviarmo-nos a evitar as invernadas, se vamos de longada pelas partes do Setentrião. Caminhavam em direcção aos Jerónimos, na peugada da multidão de mulheres enlutadas com crianças pelas mãos e velhos ossudos de semblantes carregados. Savachão falou Jorge, poupa-nos à tortura a que te vais sujeitar. Falo por mim e pelos outros. Não por mim. Eu acompanhar-te-ei disse Telo ao rei. Não quereis assistir às minhas exéquias, não é? Podíamos entretanto ir adiantando preparativos de viagem... Se assim quereis... Ainda pensas sair pelo Norte, para Santiago? Está aí, no Restelo, fundeada uma nau prestes a partir... Para as índias? Para a Flandres. Para as índias as armadas já partiram. Agora, só daqui a não sei quantos meses. E qual a vantagem de irmos para a Flandres? Menos trabalhos para a tua perna... Interrompeu-se a um gesto de desapego de Savachão e logo emendou: ... nós podemos arranjar cavalos..., mas com mais rapidez, por aquela via, atingiríamos o coração da Europa, haveria menos perigos de assaltos de ladrões formigueiros..., menos despesas e canseiras de albergues... ajudava Luís.

E mudas de cavalgaduras..., e depois..., e depois...? se subíssemos para norte, em busca da raia da Galiza, que mais verias tu do reino que não tivesses visto já? Terras maninhas, penúria de pão por míngua de braços..., desertos os paços dos senhores, as choupanas dos lavradores, as oficinas dos mesteirais... Paravam por momentos a escutar Cristóvão que lhes chamava a atenção: Na vicissitude, é sabido, vemos mais claro. O reino é um ermo. A muitos dizimou-os a peste, a não poucos o mar e à multidão a guerra. Que mais havemos de esperar senão que a fome se estenda aos que restam? Não te esqueça disse Luís, de que a fuga ao trabalho do campo e aos mesteres mecânicos vem de muito longe, a maioria dos adolescentes a buscarem servir nos paços dos fidalgos ou na corte..., ou no ócio da religião..., acrescentava João. Também havia por aí dizia Jorge, muito madraço a fingir-se criado de el-rei e de senhores, para se darem a andar de terra em terra a praticar malfeitorias. Savachão escutava, o ar grave e contristado. De qualquer modo disse, não é boa medida roubar sesmeiros e coureleiros às suas terras, para lhes meter nas mãos uma lança, uma acha-de-armas... Erro meu. Tudo isto me dói, lavrar o mar, lavrar a guerra, lavrar a ilusão..., e perder o reino..., e pôs-se a caminhar, o mais lesto que pôde, arrimado ao bordão que lhe agora era apoio. Um pouco adiante, estacou: Seja virou-se para Jorge e os outros. Preparai a nossa partida por mar. Separaram-se. Jorge e os três companheiros dirigiram-se para a praia velha, perto da qual, no meio das águas, se erguia o castelo de São Vicente a par de Belém, ondulava ao largo uma nau com as velas ferradas. Savachão e Telo continuaram caminho do mosteiro. Pararam a beber da água de um fontanário pouco afastado do pórtico lateral do templo.

Vai ser difícil entrar disse Telo. O povo já engrossa cá fora. Avançaram por entre as gentes que cada vez mais se apinhavam. Vinha de dentro o cantochão dos frades: deixara crescer uma barba de um negro cerrado, Savachão por mor das ataduras de pano que lhe escondiam os cabelos loiros. Apertados entre o povo, era-lhes impossível ajoelharem-se. Corriam-lhes os olhos à capela-mor. Ali está meu tio..., o rei meu tio... Aquele é o duque de Bragança..., e os outros nobres..., o celebrante dom Jorge Almeida, o bispo do Algarve..., aquele é Jerónimo Osório..., e demais prelados... Olhavam aos lados e ao fundo as naves pejadas de fiéis..., o cantochão ia no fim... Huic ergo parce, Deus, pie Jesu Domine, dona ei requiem. Amen. Dies irae, dies illa...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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