sexta-feira, 22 de abril de 2022

Meninas. Maria Teresa Horta. «No primeiro desses dias fugazes chegámos a casa atrasadas, já perto da hora de ser servido o jantar, ambas silenciosas, rápidas e comprometidas, a minha mãe transportando a marca da sua infidelidade imperfeita…»

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Efémere

«(…) Para entretê-la, começava a falar do que me vinha à cabeça, desde mentiras a pedaços de histórias inventadas, numa mistura de risos, versos e perguntas que nunca obtinham resposta, pois nem sequer me ouvia. Apesar de estar ciente disso, eu continuava a fantasiar: de início num murmúrio que ia subindo num crescendo agudo, até ela me cortar a palavra com um olhar ausente e gelado.

Esqueceu-se novamente de que sou sua filha, apercebia-me assombrada, e o arrepio do medo começava a trepar de manso até ao meu coração dilacerado, braços trémulos que juntava ao corpo cuidando aquietá-los. E na tentativa de fazê-la lembrar-se de mim, chamava-a num sussurro de brisa árida:

Mãezinha

Só que ela já voltara a perder-se dentro de si própria, presa de uma espécie de fascínio, de encantamento maligno que a tomava, levando-a consigo, o olhar perdido ao longe ou correndo ansioso por aqueles que passavam. E quando eu já me alegrava, embora ainda desesperada, ele aparecia apressurado e expectante, trazendo um ramo de açucenas ou de ervilhas-de-cheiro, um perfume, um disco com uma ária de ópera, ou somente o seu sorriso perfeito, e ela recompunha-se como por milagre, radiosa, a entreabrir-se, semelhante a uma rosa ou a uma camélia.

A desfolhar-se.

Cismando eu em apanhar-lhe as pétalas, a fim de, sigilosa, as guardar no meu quarto, escondendo-as debaixo do travesseiro; mas sem conseguir esquecer a presença dele, sentado na cadeira diante da minha mãe, a beber café duma pequena chávena de porcelana com uma lista fina no contorno da borda. Sinuoso, romântico, falando baixo de coisas que eu não entendia mas a levavam a rir alto, num riso solto de prazer que me envergonhava ouvir, embora gostasse de lhe ver os dentes brancos, certos e húmidos.

Para onde estás a olhar?

Ouvi-a a repreender-me desprendida, num tom agreste, a fazer-me sentir indesejada, inoportuna. Não me contendo, fitei com acinte aquele homem moreno, risca perfeita no cabelo acamado e luzidio de brilhantina, cara longa e olhos cor de avelã ensombrados pelas pestanas negras; olhar incerto a afastar-se do meu demasiado depressa. Lembro-me, como as palmas das suas mãos fortes e morenas cobriam (apenas por alguns segundos) as mãos da minha mãe, simultaneamente possessivo e indolente, e de como ela, relutante, as retirava, a tropeçarem no corpo ou na chávena, no cinzeiro, na taça do meu gelado derretido. No primeiro desses dias fugazes chegámos a casa atrasadas, já perto da hora de ser servido o jantar, ambas silenciosas, rápidas e comprometidas, a minha mãe transportando a marca da sua infidelidade imperfeita, e eu a de sua cúmplice. Sem saber bem de quê, nem porquê, mas do seu lado. Depois de passarmos o portão de ferro forjado e percorrermos o caminho das pedras, quando tirou a chave da mala para abrir a porta da rua cambaleei a tiritar de frio como quando se tem febre, ansiando por amparar-me nela, mas a sentir a sua anca afastar-se, em desabrigo. Assim entrámos como duas estranhas, estrangeiras, naquela casa silenciosa e aparentemente deserta, que me pareceu inóspita e ameaçadora. Sem uma palavra e nem sequer acendendo a luz, aliviada, a minha mãe largou-me no escuro, desconhecendo que até de olhos fechados eu era capaz de seguir a pista do odor almiscarado do seu corpo. Deslizei, pois, invisível, e estaquei do lado de fora do quarto de dormir onde ela se fechara, a adivinhá-la no atirar da écharpe para cima da colcha de cetim cor-de-rosa e no pousar da malinha sobre o tampo lavrado da cómoda, junto da escova de cabelo com cabo de prata e dos frascos de cristal onde os aromas conturbados se entorpeciam». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

JDACT, Maria Teresa Horta, Literatura, O Saber,