Efémere
«(…)
Para entretê-la, começava a falar do que me vinha à
cabeça, desde mentiras a pedaços de histórias inventadas, numa mistura de
risos, versos e perguntas que nunca obtinham resposta, pois nem sequer me ouvia.
Apesar de estar ciente disso, eu continuava a fantasiar: de início num murmúrio
que ia subindo num crescendo agudo, até ela me cortar a palavra com um olhar
ausente e gelado.
Esqueceu-se novamente de que sou sua filha, apercebia-me
assombrada, e o arrepio do medo começava a trepar de manso até ao meu coração dilacerado,
braços trémulos que juntava ao corpo cuidando aquietá-los. E na tentativa de
fazê-la lembrar-se de mim, chamava-a num sussurro de brisa árida:
Mãezinha…
Só que ela já
voltara a perder-se dentro de si própria, presa de uma espécie de fascínio, de encantamento
maligno que a tomava, levando-a consigo, o olhar perdido ao longe ou correndo
ansioso por aqueles que passavam. E quando eu já me alegrava, embora ainda
desesperada, ele aparecia apressurado e expectante, trazendo um ramo de açucenas
ou de ervilhas-de-cheiro, um perfume, um disco com uma ária de ópera, ou
somente o seu sorriso perfeito, e ela recompunha-se como por milagre, radiosa,
a entreabrir-se, semelhante a uma rosa ou a uma camélia.
A desfolhar-se.
Cismando eu em apanhar-lhe as pétalas, a fim de, sigilosa, as
guardar no meu quarto, escondendo-as debaixo do travesseiro; mas sem conseguir
esquecer a presença dele, sentado na cadeira diante da minha mãe, a beber café
duma pequena chávena de porcelana com uma lista fina no contorno da borda.
Sinuoso, romântico, falando baixo de coisas que eu não entendia mas a levavam a
rir alto, num riso solto de prazer que me envergonhava ouvir, embora gostasse
de lhe ver os dentes brancos, certos e húmidos.
Para onde estás a olhar?
Ouvi-a a
repreender-me desprendida, num tom agreste, a fazer-me sentir indesejada,
inoportuna. Não me contendo, fitei com acinte aquele homem moreno, risca
perfeita no cabelo acamado e luzidio de brilhantina, cara longa e olhos cor de
avelã ensombrados pelas pestanas negras; olhar incerto a afastar-se do meu
demasiado depressa. Lembro-me, como as palmas das suas mãos fortes e morenas
cobriam (apenas por alguns segundos) as mãos da minha mãe, simultaneamente
possessivo e indolente, e de como ela, relutante, as retirava, a tropeçarem no
corpo ou na chávena, no cinzeiro, na taça do meu gelado derretido. No primeiro
desses dias fugazes chegámos a casa atrasadas, já perto da hora de ser servido
o jantar, ambas silenciosas, rápidas e comprometidas, a minha mãe transportando
a marca da sua infidelidade imperfeita, e eu a de sua cúmplice. Sem saber bem
de quê, nem porquê, mas do seu lado. Depois de passarmos o portão de ferro
forjado e percorrermos o caminho das pedras, quando tirou a chave da mala para
abrir a porta da rua cambaleei a tiritar de frio como quando se tem febre,
ansiando por amparar-me nela, mas a sentir a sua anca afastar-se, em desabrigo.
Assim entrámos como duas estranhas, estrangeiras, naquela casa silenciosa e
aparentemente deserta, que me pareceu inóspita e ameaçadora. Sem uma palavra e
nem sequer acendendo a luz, aliviada, a minha mãe largou-me no escuro, desconhecendo
que até de olhos fechados eu era capaz de seguir a pista do odor almiscarado do
seu corpo. Deslizei, pois, invisível, e estaquei do lado de fora do quarto de
dormir onde ela se fechara, a adivinhá-la no atirar da écharpe para cima da
colcha de cetim cor-de-rosa e no pousar da malinha sobre o tampo lavrado da cómoda,
junto da escova de cabelo com cabo de prata e dos frascos de cristal onde os
aromas conturbados se entorpeciam». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações
dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.
Cortesia de PdQuixote/JDACT
JDACT, Maria Teresa Horta, Literatura, O Saber,