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O Homem de Constantinopla
As gotas de chuva desenhavam sucessivos anéis em expansão no espelho sujo
das poças de água enlameada, tombando em saraiva sobre as múltiplas crateras
que o mau tempo escavara na rua de terra batida. Os habitantes de Trebizonda
apressavam-se em busca de refúgio, saltitando de alpendre em alpendre num
esconde-esconde aflito para se abrigarem do céu de chumbo que desabava em fúria
aterradora. Deixem passar o rapaz mais esperto de Trebizonda!, troou uma voz
numa ladainha cantarolada.
Deixem passar o filho do todo-poderoso senhor Sarkisian! O homem que assim
trauteava cruzou a rua em passo de corrida, os pés descalços enlodados quase
até ao joelho, uma criança minúscula montada sobre os ombros. O pequeno tinha a
cabeça envolta num enorme lenço para se proteger da chuva; não se lhe via o
rosto, nem tal era preciso. Mesmo que o criado não anunciasse o nome do pai do
petiz, todos sabiam bem que aquele era o filho do senhor Vahan Sarkisian, o
vendedor de tapetes que, ao que se dizia de ciência certa, fizera amigos na
própria corte do sultão. Deixem passar o rapaz mais esperto de Trebizonda!,
voltou o criado a gritar, como se aquela fosse a forma mais eficaz de abrir
passagem na cortina de chuva e no lamaçal, entre os fiacres, as carroças, as
mulas e os transeuntes fugidios que congestionavam a rua. Deixem passar o filho
do todo-poderoso senhor Sarkisian!
O mar Negro, habitualmente tranquilo como
um lago gigante, agitava-se ao lado da rua, parecia um monstro atormentado. O
criado com a criança aos ombros ignorou a enorme massa de água escura que
fustigava as rochas em fúria cega e ameaçava invadir a linha de costa e virou à
direita, desaguando por fim no destino. Cruzou um portão, entrou a correr num
pequeno edifício e só parou no átrio sombrio, no meio de uma pequena multidão
de crianças e de alguns adultos que sacudiam ainda a água das roupas. Com um
sopro de exaustão, pousou o pequeno corpo no chão; tirou-lhe o lenço da cabeça
e inspeccionou-lhe o cabelo. Então, menino?, perguntou ao detectar uma madeixa
molhada. Entraram aqui umas gotinhas? O pequerrucho assentiu com a cabeça. Molhei-me. O
criado passou os dedos pela madeixa, penteando-a para trás e disfarçando o tufo
húmido no meio do cabelo seco. Pronto, já está!, exclamou, como se tivesse
miraculosamente resolvido o problema. Agora já pode ir para a aula, menino! Despache-se,
porque senão... Uma mão gorda pousou abruptamente sobre o ombro do pequeno,
interrompendo as derradeiras recomendações. Ele agora vem comigo, ordenou o
vulto que se abeirara deles. E tu, kahveci, também! O kahveci, O homem do café,
expressão porque era conhecido o criado, levantou os olhos e, num misto de
surpresa e terror, reconheceu o corpo imponente e arredondado do patrão.
Senhor!, exclamou, baixando de imediato a cabeça num gesto de submissão. Eu...,
sim senhor! Vahan Sarkisian virou as costas e arrastou o filho até à parede
onde se encontrava um painel coberto por folhas de papel. As páginas pregadas
ao painel apresentavam listas de nomes garatujadas à mão em caracteres arménios
com algarismos diante deles. Estás a ver este número aqui?, perguntou Vahan,
indicando a linha com o seu indicador anafado. É a tua nota. Tiveste dezoito. O
petiz venceu o medo do pai e espreitou a classificação. É..., é bom, não é? Com
um movimento inesperado, Vahan esbofeteou o rosto do filho. Não foi a melhor
nota!, vociferou, o rosto rubro de fúria súbita. Olha para aqui! Forçou o
menino a voltar os olhos humedecidos para o painel com as classificações e
apontou para uma outra linha. Estás a ver aqui o filho do Shakhian, o Setrak?
Quanto é que ele teve? Dezanove! Dezanove, vês? E o pai dele..., o pai dele não
passa de um reles comerciante de fruta! Fitou o pequeno com a expressão severa
de um juiz na hora da sentença. Se o Setrak conseguiu, porque não conseguiste
tu? Queres humilhar-me perante a cidade toda? Queres cobrir-me de vergonha? Com
o rosto incendiado pelo efeito da bofetada e o queixo trémulo como num assomo
febril, o menino baixou os olhos, pronto a libertar-se no pranto de quem se
sente injustiçado, mas lutou contra as lágrimas que lhe marejavam as pálpebras
e ergueu de novo o olhar para fixar teimosamente a atenção embaciada na linha
indica da pelo pai. O Setrak tinha de facto conseguido dezanove valores, o que
fazia dele o melhor aluno da escola. Era, na verdade, um adversário difícil de
bater. Mas, que diabo, o seu dezoito não lhe parecia assim tão mau! Anda cá! Vahan
Sarkisian puxou o filho pela orelha, fez sinal ao criado de que o seguisse e
cruzou o pátio com passos determinados . Meteu pelo corredor e, chegando diante
da porta do director da escola, nem sequer bateu». In José Rodrigues Santos, O Homem de
Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN 978-989-616-549-9.
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