O Sapateiro…
«(…)
Não choreis, que tais tendes vossos filhos. Deixai-os estar, que assim vós o
quisestes... Cala-te, pregador. Tem pena desta gente. A mim não me atingirás.
Já ouvi tudo. Já sei tudo. A dimensão da minha culpa e da minha desculpa. Sei o
que vais dizer a seguir e a seguir e depois do a seguir e como perorarás...
Pobre tio-avô, filho de meu bisavô Emanuel! Que rosto pálido o teu aí sentado no
cadeirão real em que te colocou a minha loucura! As palavras do orador ferem-te
fundo, a ti que não tens culpa. Escuta-as..., desonra para vós, ó grande rei dom
Manuel, a cujos pés tantos reis do Oriente, com as mãos cruzadas, vinham dar obediência...
E que direi de vós, rei dom João terceiro, em cujo tempo houve este reino muitas
e mui grandes vitórias, quando vejo vosso neto jazer despido entre outros
mortos no campo de Arzila, sem sepultura... Que vergonha esta! Que desonra!...
Vamos
embora daqui dizia Telo em soluços ao ouvido de Savachão. Vamos daqui. Ao
Senhor Deus nosso, justiça; a nós nenhuma outra coisa mais compete que afronta,
desonra e vergonha de nosso rosto... Com quanta maior razão pudera dizer de si
hoje estas palavras o desventurado reino de Portugal... Que triste, que lamentável,
que desonrada história se contará agora deste reino?, reino outrora tão
glorioso que, sendo tão pequeno em gente, era tão grande em esforço e ânimo,
que lá na índia, tantas mil léguas daqui, fazia tremer a barba a nossos inimigos,
quando se escrever que seu rei, com toda a flor do reino, em menos de três
horas se consumiu de todo, à vista e faro da nossa terra? Que desonra esta de
nossos rostos, de nossos reis, de nossos príncipes, de nossos bispos, de nossos
pregadores, de nossos pais... Que desonra para vós, rei dom Afonso Henriques...
Montes de Gelboé, nec ros nec pluvia veniat super vos... Campos desastrados de
Larache, de hoje em diante mais não deis fruto, malditos sejais para sempre,
pois em vós perdeu Portugal sua nobreza, em vós se acabou seu esforço, em vós perdeu
sua honra, onde ficaram nossos filhos, nossos irmãos, nossos maridos, o nosso
rei tão formoso... quasi non esset unctus oleo... como se não fora ungido...
Vamos embora, vamos embora!, puxava Telo, aflito, a manga de Savachão,
por entre o vendaval de suspiros e ais que varria aquela seara de gente. Mas Savachão
não o sentia. Murmurava como alucinado: quasi non esset unctus..., como se não
fosse ungido com o óleo... Não, não, pregador! Por aí, não, que me feres no
mais fundo de mim... Depois de morto Saul, não faltaram varões esforçados que arriscaram
suas vidas para descobrir o corpo de seu rei e tanto andaram até que o acharam
e o levaram e lhe deram honrosa sepultura...
Que
desonra esta de portugueses! Morrer-vos vosso rei em parte onde nem privado nem
senhor nem grande nem pequeno soube dar conta dele!... Cuidar nisto parece
sonho... cuidar em um rei que lágrimas pediram, lágrimas pariram, lágrimas
conceberam, lágrimas criaram, lágrimas sustentaram, acabar assim da maneira que
vedes... Morte e nascimento andam comigo. Meu pai morreu, eu nasci. O dia da
minha morte foi o do meu nascimento. Posso dizer que só agora me nasço, depois
que desci a ser igual ao mais pobre dos pobres. Que importa o que me ensinava o
meu preceptor Luís Gonçalves, que a realeza é dignidade que não morre? Pobre Fénix
minha! Sei que se, neste preciso momento, eu avançasse aí ao meio da capela-mor
e me descobrisse, me desse a conhecer, haveria espanto, surpresa, júbilo... e o
pregador teria de emendar o seu sermão. Como pode a um rei jovem suceder um rei
velho?... Mas não. O dia deste meu nascimento é o dia da minha morte. Ninguém
saberá que estou vivo...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999,
Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,