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A
Fuga
Olhou para o cabelo e reparou que o espelho ia reflectindo os andares à medida que eles deslizavam compassadamente por detrás de si, num ruído metálico, surdo, de máquina já cansada. Olhou para os cabelos e não para os olhos, para a boca; olhou para os cabelos, irritada, e puxou-os mais do que os alisou. O elevador percorreu o último andar que ela viu reflectido fugazmente por detrás dos cabelos e pensou agora enquanto fechava a porta cromada estreita, e tocava à campainha: agora, como poderia ter encolhido os ombros enquanto esperava que lhe abrissem a porta, retraindo-se ante o barulho que lhe garantia terem já chegado as pessoas, a avaliar pela quantidade opaca de ruído que se debatia contra a madeira envernizada da porta onde não se encostava. Afastou-se, tropeçou na passadeira áspera do patamar e ficou com a respiração suspensa perante a onda quente que a envolveu, a abraçou, a empurrou para o hall onde a mesa comprida, dourada, com um tampo de mármore cinzento, se encostava, sóbria, a uma das paredes; e logo o olhar irónico e manso da empregada fardada de negro a fez sentir mal penteada. Avançou depressa sem encontrar ninguém, vendo apenas de raspão uma rapariga de branco com um colar azul turquesa que lhe sorriu vagamente. Correu o resto que lhe faltava do corredor comprido e atirou-se para dentro do quarto às escuras, onde ficou um momento sem acender a luz, os olhos fechados, os dedos crispados no tecido do casaco que acabou por tirar, ou melhor, por arrancar de si, e então acendeu a luz fraca do candeeiro da mesa de cabeceira, que logo espalhou todas as sombras habituais, conhecidas, como que resignadas e móveis conforme se mexia, erguia as mãos à altura da cabeça a puxar mais do que a alisar os cabelos lisos sobre os ombros. Os cabelos de um castanho-escuro com reflexos avermelhados, quase do tom da blusa que tirou pela cabeça num só gesto: e ignorando as vozes das pessoas já na casa de jantar e sem reparar que tremia de frio, quase nua, acendeu um cigarro.
Party
Corri as mãos pela blusa vermelha e apoiei-me ao
seu ombro. À nossa volta as pessoas conversavam ou sorriam apenas. As mulheres
afloravam com as pontas dos dedos os braços nus, acendiam os cigarros na chama
curta e azul dos isqueiros de gás que os homens lhes estendiam ou que elas
tiravam das malas pequenas. Apoiei-me mais ao teu ombro, tirei um copo da
bandeja negra pousada sobre o móvel onde nos encostávamos e fiquei a olhar o
líquido amarelo sem qualquer vontade de o beber, tornei a apoiar-me ao seu
ombro, com o copo gelado numa das mãos, a outra esquecida perto da sua enquanto
se moviam à nossa volta e nos falavam, enquanto eu pensava apenas no porquê do
teu maior silêncio hoje e tentava adivinhar no tom da tua voz a explicação ou o
motivo atenta à tua mais pequena mudança de humor. Cansada, demorava o copo
perto da boca, e as sensações demorava-as também, suspendia-as até à vertigem
ou à loucura extrema de não pensar. Cansada e todavia atenta aos seus menores
gestos, cansada e tensa, a blusa macia junto à pele, o copo gelado pelo sumo que deixo correr pela
garganta, o copo levemente apoiado nos lábios, o copo esverdeado que aperto
entre os dedos de unhas mal tratadas e olho as outras tão diferentes, os
cabelos soltos ou apanhados sobre a nuca, o rosto marcado pelo cuidado atento;
ou melhor, o rosto atenuado e o corpo artificiosamente dissimulado. Corro as
mãos pela blusa vermelha. Olho-as vejo-as na medida do meu cansaço saturado
apenas atenta a ti e sinto enorme esta diferença que construo consciente.
Encosto-me ao teu ombro e fecho os olhos durante uns segundos os meus ombros
debaixo dos teus dedos. A sala por momentos existe apenas devido ao ruído das
vozes, mas é o teu silêncio que se destaca saliente austero». In
Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa-América,
Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.
Cortesia de PEuropaAmérica/JDACT
JDACT, Maria Teresa Horta, Literatura, O Saber,