A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491
«(…) O tripulante que era
igualmente carpinteiro e cozinheiro havia acendido carvões no braseiro
instalado na proa e começara a cozinhar os peixes frescos que o intendente
tinha pescado durante o dia com seu arpão. Fiquei surpreso com a fome que eu
sentia. Mais cedo, quando tivera as ânsias de vômito, pensei em nunca mais ingerir
comida novamente. Lomas me viu esfregando a barriga. Rá! Você me lembra meu
filho. Sempre com fome. Tem o cabelo da mesma cor e quase a mesma altura.
Quantos anos você tem? Não tenho a certeza, respondi. Dezasseis..., talvez
mais. Lomas assoviou entre os dentes. Então não tem sido alimentado
regularmente na sua vida, não é mesmo? Eu nada disse. Não foi preciso. Eu sabia
que era menor do que o normal e muito magro. Eu podia ver como meus braços e
pernas eram finos. Vá até ao cozinheiro. Diga-lhe que eu o mandei e peça-lhe um
pedaço de peixe para comer. Levantei-me. Lomas estendeu a mão para me deter. Puxou-me
para perto e falou baixinho no meu ouvido.
Escute
bem o que lhe vou dizer agora, Ratinho. Precisa tomar cuidado, todas as noites,
quando os homens estão fazendo suas refeições e têm permissão para deixar seus
postos e irem à privada. Cuide para que, nessa hora, você não fique sozinho em nenhum
lugar do barco. Não tome vinho. Não importa o quanto os outros tentem convencê-lo.
Alguns desses homens livres cortarão sua garganta só por diversão; são piores
criminosos do que aqueles mantidos acorrentados na proa, e com mais chances de
machucar você do que qualquer um dos escravos árabes. Alcançou por baixo do banco
e afastou para o lado o saco com seus pertences. À noite, pode dormir aí debaixo.
Lomas tinha razão. Alguns dos homens tentaram mesmo me encorajar a tomar vinho,
e alguns me olharam de um modo que me assustou de verdade. Na hora das refeições
nunca me afastava muito do banco de remador de Lomas e, com sua protecção,
fiquei seguro, pelo menos por um tempo. Eu sofria de pesadelos recorrentes, observando
minha mãe morrer de fome e revivendo cada momento, várias e várias vezes, do
fim brutal do meu pai. Eu passava meus dias obedecendo às ordens de Panipat e
me protegendo de qualquer perigo que pudesse me atingir. O constante pensamento
que me sustentava era de que um dia eu talvez vingasse meus pais.
Enquanto isso, um aspecto dessa
nova vida era melhor do que qualquer um da antiga. Eu não vivia mais
constantemente com fome. Cada dia eu comia o suficiente para encher o estômago.
As semanas se passaram e fomos do Outono para o Inverno. E, mesmo que o tempo
se tornasse mais tempestuoso, eu havia adquirido o equilíbrio de um marinheiro,
de modo que minhas entranhas não se deslocavam com cada movimento do barco num
mar agitado. A exposição ao sol bronzeou a superfície de minha pele, e, por
baixo dela, eu podia sentir músculos firmes se formando em meus braços e
pernas, e pelo peito. Trabalhar ao ar livre me tornou mais saudável do que eu
jamais fora, tanto que o capitão acabou sendo forçado a me arranjar calções maiores
para vestir. Sentia-me feliz com tudo isso, embora soubesse que cada dia de desenvolvimento
me levava para mais perto do momento em que teria de substituir um dos homens
mais velhos e mais fracos e assumir seus remos na proa. Quando esse dia
chegasse, Panipat colocaria uma algema metálica no meu tornozelo e juntaria as duas
extremidades. A corrente que mantinha os escravos nos seus lugares no banco seria
presa à algema, e então eu estaria condenado a remar pelo resto de minha vida. Meu
destino estava selado, sem esperanças. Só que... No cós de meus calções eu
ainda tinha a faca.
Zarita
Havia cavaleiros no pátio. Quando
ouvi o barulho de cascos, levantei-me de onde estávamos terminando a nossa
refeição do meio do dia para ir até a janela e olhar. Zarita!, repreendeu-me o
paizinho. Você não é mais uma criança. Não deve sair correndo da mesa porque
está entediada e ouviu alguma distracção lá fora. Ele estava sentado com a mão
sobre a de Lorena. Atormentava-me vê-lo tão envolvido e eu teria usado qualquer
desculpa para deixar a mesa onde o paizinho gostava que fizéssemos todo dia
pelo menos uma refeição juntos. Dois meses atrás, quando se tornou esposa de
meu pai, Lorena não tomara, na mesa, o lugar da minha da mãe, do lado oposto ao
dele. Desde minha tenra infância eu me sentara entre meus pais, então
conversávamos como um trio e, enquanto comíamos, compartilhávamos nossas
histórias e brincadeiras. Após o casamento deles, Lorena se posicionara do lado
direito do meu pai e, durante a refeição, frequentemente focinhava-o do modo
mais desavergonhado». In Theresa Breslin, Prisioneira da
Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.
Cortesia de GRecord/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,