De acordo com o original
«(…) Do barco responderam que era só marchar, de mais a mais ia romper a lua. Chegaram emfim. N'um leve silencio d'acaso ouviam-se os soluços dos dois, parece que prolongados infinitamente, na sua expressão de angustia, pelo deslisar monotono das aguas... Aquillo confrangia o barqueiro, elle tambem era pae... Por isso, mal chegaram á beira do rio, apressou-se a dizer para o pequeno: Ora bem, Joaquimsinho, beija a mão a teu pae e dize-lhe adeus. Ouviu-se um chorar lancinante, a voz do pobre José Cosme a querer animar o filho: Então, meu filho?... Deus te abençoe, meu amor... Nossa Senhora te veja ir. E fez-lhe prometter que havia de resar sempre a Nossa Senhora, elle tambem lhe resaria, pois era ella quem dava saude, quem fazia a gente feliz. Não te esqueças d'ella mais da alminha de tua mãe e de tua irmã... Mas o pequeno chorava cada vez mais, agarrado ao pescoço do pae, beijando-o sofregamente, acarinhando-o, sem forças para dizer palavra. Então o José Cosme, perdida a esperança de animar o filho, só exclamava desvairado: Valha-me Deus! O Senhor me valha pela sua infinita misericordia!
E o Joaquim sempre agarrado a elle, beijava-o na cara, na cabeça, nas mãos. Até que o Thomaz teve de intervir, era preciso despegar d'ali por uma vez. Com'assim, sr. José, isto tem de ser... E segurando o pequeno com força puxou-o para elle. Quando já o tinha nos braços, ouviu-se o José Cosme que supplicava de mãos postas: Só um instante, só um quasinadinha, Thomaz! E o pobre pae caia de joelhos na areia, n'uma attitude de supplica. Mas n'esse momento, o barqueiro saltou de um pulo para o barco, levando ao colo a creança. Rema!, intimou em voz rapida. O barco recuou então subitamente, ao mesmo tempo que os remos fizeram plhau!, sobre a agua. Então o choro do José Cosme tornou-se de uma violencia desesperada, ao ouvir a voz lacrimosa do pequeno dizendo-lhe adeus lá do barco. Adeus, Joaquim, adeus! Adeus, pae! Adeus! Mas repentinamente, com voz resoluta e firme, o José Cosme gritou na direcção do barco: Thomaz! ó Thomaz! por alma de teu pae faz lá alto um instante. Acabou-se! custara-lhe tomar aquella resolução, mas já agora era melhor ficar sósinho de todo. E segurando nos dentes um pequeno objecto, arremessou a jaqueta ao areal e d'um lance deitou-se a nado. O Thomaz que ouvira o mergulho do corpo, fez recuar o barco; mas o José Cosme, velho nadador destemido, com meia duzia de braçadas ganhou-lhe de prompto a quilha. O filho tinha-se debruçado, na ancia de esperar o pae, de o ver ainda outra vez. N'um movimento rapido, o José Cosme entregou ao pequeno o que levava entre os dentes, dizendo-lhe a chorar: É a medalha, Joaquim; é a medalhinha de tua mãe, meu filho!... Reza-lhe, sim?!
E chorando cada vez mais, o pobre José Cosme pediu ao barqueiro que lhe chegasse o pequeno para o ultimo beijo... Dado o ultimo beijo, o barco poz-se de novo em marcha. Vinha a romper a lua, enorme, torva, afogueada, como se viesse de algum banho de sangue em região mysteriosa de lagrimas... E no silencio agoireiro da noite, apenas cortado pelo bater monotono dos remos e pelo bracejar desalentado do triste nadador, á voz do filho que chamava respondia cada vez de mais longe-longe como se fôra do Infinito! a voz lacrimosa do pae, com o seu fúnebre, adeus!, que elle bem sabia ser eterno...
Só quando o echo do ultimo adeus do Joaquim, perdido na distancia, diluido no luar que surgia, desfeito no lugente murmurio das aguas, fundido no derradeiro suspiro da brisa matinal, deixou de chegar á praia, é que o pobre abandonou o areal e se foi, sempre a chorar, tiritando ao frio da sua desgraça, como a um vento agudissimo do Polo, na direcção do horto silencioso...» In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.
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