sábado, 23 de abril de 2022

Meninas. Maria Teresa Horta. «… desviou a cara para a cintura delgada, lábios colados ao cetim do vestido turquesa que, em vez de coar os odores do corpo da mãe, lhe trazia intactas as essências frutadas, encrespadas, da sua carnação de loura»

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Efémere

«(…) Furtiva, eu era hábil na arte de urdir. Mas, a pouco e pouco, fui-me apercebendo da música: uma ária de Puccini, descobriria mais tarde. E encostada à parede do corredor, reparei que debaixo da porta do escritório do meu pai havia uma lista de luz solitária. Em bicos de pés aproximei-me, e sem ruído entreabri os batentes apenas encostados, a descobri-lo, muito magro e moreno, sentado à secretária, rodeado de cadernos e de livros, a preparar a aula que iria dar no dia seguinte. Afastei-me, atordoada.

Lápis-Lazúli

Em contraluz e falando devagar, modelando as palavras, a mãe disse: De ti não quero mais nada! Levo comigo a roupa do corpo e a nossa filha. Pegou nela, fininha e atordoada, bibe de bordado inglês no peitilho a defender o vestido de organdi cor de romã com mangas de balão enfunadas, pô-la debaixo do braço e contornando o maple de veludo grená, começou a andar na direcção da porta do escritório, enquanto em silêncio o pai, sentado à pesada secretária de mogno diante dos cadernos de capa de oleado preto e dos livros sublinhados, ficou imóvel, de uma palidez doentia, sem no entanto dar qualquer sinal do arrepio que sempre provoca o ínvio encontro com a adversidade. A vê-la afastar-se da sua vida: loura e esguia, olhos lápis-lazúli toldados pela morbidade das pestanas, pernas altas à transparência da saia lilás, leve balancear das ancas magras. E quando a mãe se voltou, um pouco antes de se perderem as duas no escuro do corredor da casa, a menina, na sua posição inclinada de lado, por segundos julgou vê-lo encolher-se como se temesse que elas regressassem.

Olhou o livro que o pai tinha nas mãos magras, bonitas, em vez de tentar encontrar-lhe o olhar cinzento esverdeado que sempre se distraía dela. Mal escondida atrás dos cortinados de um tom dormente de pêssego aturdido, da janela do escritório, a menina ouvia-os discutir, palavras que se misturavam no grito, delas entendendo só a ameaça; gume e espelho a mostrar coisas terríveis que não queria ver nem escutar por tanto a assustarem. Mas como de costume acabou por sair sorrateira do seu esconderijo onde passava tardes inteiras, passo tímido a deslizar no chão encerado, sapatos de verniz preto com presilha de abotoar no peito do pé com botãozinho de lustro, para ir de manso encostar a face pálida à saia lisa e travada da mãe.

Foi então que, num arroubo esta a agarrou e a subiu ao peito apertando-a muito, olhar de hortênsia subitamente fixo, para logo a derrubar nos braços a descê-la um pouco inclinada até a pousar de novo no chão, embora aparentemente relutando no seu próprio gesto inacabado, que ela acabou por quebrar num repente, súbito rompante incontrolável, enquanto dizia, sem moderar a exaltação da voz: De ti não quero mais nada! Levo comigo a roupa do corpo e a nossa filha. Depois, curvando-se, tornou a agarrar nela, de braçado, miudinha de ossos e de carnes, aturdida no seu fatinho de cassa de algodão de rosa da Abissínia, pô-la junto da anca fina, e num passo nervoso mas decidido evitou a chaise longue de faia com estofo de damasco, roçou ao de leve com o tornozelo o biombo lacado e, sem se voltar para trás em jeito de saudade, deixou o escritório. Quando iam a caminho da porta da rua na obscuridade do corredor, a menina que então se encontrava de lado, mas virada para a maciez dos seios da mãe, reparou no brilho de lâmina dos seus olhos de anil luzente. E encandeada, encolheu-se na tepidez da pele suada do braço perfumado que a segurava, desviou a cara para a cintura delgada, lábios colados ao cetim do vestido turquesa que, em vez de coar os odores do corpo da mãe, lhe trazia intactas as essências frutadas, encrespadas, da sua carnação de loura». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

 Cortesia de PdQuixote/JDACT

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