«(…) Quando saiu pela escada da catedral, sua mente clareou por efeito do vento fresco que soprava, e ela entendeu, num golpe repentino de inspiração, quase como se estivesse ainda possuída pelo Espírito Santo, o que e como devia dizer para o marido que vinha na sua direcção naquela confusão toda, com os mantos no braço. Ela examinou-o, com um sorriso meio discreto, mas totalmente seguro. Ela mantinha essa relação porque ele era um marido tranquilo e um pai extremoso, embora não fosse o tipo de homem para ser venerado ou admirado. Era difícil acreditar que ele, de facto, fosse neto de um homem totalmente diferente, o fortíssimo Folke, o Gordo. Magnus era um homem magro e se não fossem as roupas estrangeiras que no momento ele vestia, as pessoas poderiam dizer que se tratava de um qualquer no meio da multidão. Quando chegou à sua frente, ele fez uma vénia e pediu a ela para pegar seu manto enquanto ele envolvia o próprio corpo com o seu grande manto azul-celeste, forrado com pele de marta, prendendo-o ao pescoço com uma fivela norueguesa de prata. Depois, ajudou-a, ensaiando uma carícia com suas mãos delicadas, que não eram as mãos de um guerreiro, e perguntou como é que tinha podido aguentar por tanto tempo as louvações ao Senhor no seu bem-aventurado estado. Ela respondeu que não tinha passado por nenhuma dificuldade, já que, em parte, tinha trazido Sot para ampará-la e, por outro lado, o Espírito Santo dignou-se aparecer para ela. Disse isso de uma maneira que costumava usar quando dava a entender que não falava a sério. Ele sorriu da sua esposa, acreditando que se tratava de mais uma das habituais brincadeiras, e procurou em seguida pelo escudeiro que vinha na sua direcção com a espada trazida da sala de armas. Quando meteu a espada por baixo do manto e começou a colocá-la no cinturão, seus cotovelos ficaram por baixo do manto, o que fez com que seu corpo parecesse largo e forte, coisa que ele não era. Então, ofereceu à mulher seu braço e perguntou se ela queria dar uma voltinha pela praça diante deles e ver o espectáculo ou queria ir imediatamente descansar.
Sigrid respondeu logo que
gostaria de esticar um pouco as pernas, sem precisar cair de joelhos a toda a hora,
e ele sorriu timidamente de mais essa piada atrevida dela e comentou que seria
até divertido ver todos esses jogos para os quais o rei os convidou. No centro
da praça actuavam acrobatas franceses e um homem que vomitava fogo, tocavam-se
flautas e gaitas e, mais além, de uma das grandes barracas de cerveja
escutava-se o som surdo de tambores. Os dois avançaram cuidadosamente entre a
multidão onde os mais conceituados visitantes da igreja agora se misturavam com
o povo e os servos. Depois de um curto momento, ela inspirou profundamente e
disse tudo de uma vez, sem desvios: Magnus, meu querido marido, espero que possa
se manter superiormente calmo e digno, ao escutar agora aquilo que acabo de
fazer, começou ela e, fazendo nova inspiração, continuou rápido, antes que ele
tivesse tempo de responder: Dei a minha palavra ao rei Sverker de que
ofereceria de presente aos monges cistercienses de Lurõ a nossa propriedade de Varnhem.
Jamais poderei retirar a minha palavra dada ao rei, é irrevogável. Vamos-nos
encontrar com ele amanhã no castelo, para que isso seja escrito e ractificado
com o sigilo real.
Tal como havia previsto, ele
parou de repente e olhou primeiro para o rosto dela, inquiridor, procurando por
aquele sorriso que ela exibia ao falar brincando, à sua maneira toda especial.
Mas ele entendeu logo que ela falava sério e, então, a raiva se apossou dele
com tal intensidade que por pouco não lhe deu uma bofetada, que seria a
primeira, se eles não estivessem entre amigos e inimigos e todo aquele povão. Você
está fora de si, mulher! Se não fosse pelo facto de ter herdado Varnhem, ainda
hoje estaria apodrecendo no mosteiro. E foi por causa de Varnhem que nos
casamos. Foi no último momento que ele se conteve e acabou falando baixo, mas
entre dentes, os lábios fortemente contraídos. Sim, isso é verdade, meu querido
marido, respondeu ela, com o olhar virtuosamente abaixado. Se eu não tivesse
herdado Varnhem, os seus pais teriam escolhido outra pretendente. Nesse caso, é
verdade, eu seria agora uma freira, mas é verdade também que nem Eskil nem essa
nova vida que carrego abaixo do meu coração existiriam se não fosse por
Varnhem. Magnus não respondeu. Parecia estar pensando na escolha das palavras certas
para expressar a sua raiva. E, nesse momento, chegou Sot, trazendo pela mão
Eskil, que imediatamente correu na frente e pegou a mão de sua mãe e começou a
falar rápido e alto de tudo o que tinha visto lá dentro na catedral. Depois de
ter sido obrigado a ficar calado e quieto por tanto tempo, ele falava agora
como se as palavras jorrassem como a água de uma represa quando é aberta na Primavera,
impossível de conter. Magnus pegou seu filho nos braços, acariciou seus cabelos
com amor, ao mesmo tempo que encarava a esposa com hostilidade. Mas, de
repente, ele largou o menino no chão e ordenou a Sot, quase que de maneira
desagradável, que levasse Eskil para ver as brincadeiras e que logo em seguida
se veriam de novo. Sot, surpresa, pegou o menino pela mão e puxou-o para longe,
enquanto este, contrariado, choramingava e resistia. Mas, como sabe, meu caro
marido, continuou Sigrid, rápido, para que fosse ela a conduzir a conversa e não
deixando que ele prosseguisse, encolerizado, antes voltasse ao bom senso e à
calma. Sempre desejei receber Varnhem de presente de casamento, embora tenha
sido eu que herdei a propriedade, e que consegui que a herança ficasse registada
com o sigilo real, e ainda que, para mim, bastem o manto que trago sobre meus
ombros agora e apenas um pouco de ouro para me enfeitar. É, isso também é
verdade, respondeu Magnus, ainda mal-humorado». In Jan Guillou, A Caminho de
Jerusalém, As Cruzadas, Bertrand Brasil, 2002, ISBN 978-852-860-896-0.
Cortesia de BertrandB/JDACT
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