Binah
«(…) Assim eu podia passar a manhã em baixo a discutir
ciência proletária e a tarde em cima a praticar o saber aristocrático. Vivia à
vontade nessas duas universidades paralelas e não me sentia absolutamente em
contradição. Também acreditava que estivesse à porta uma sociedade de iguais,
mas me dizia que naquela sociedade era necessário que funcionassem (melhor que antes),
por exemplo, os trens, e os revolucionários que me rodeavam não estavam de facto
aprendendo a dosar o carvão na caldeira, nem a accionar as agulhas dos desvios
ou a organizar uma tabela de horários. Era preciso entanto que alguém estivesse
pronto para os trens. Não sem algum remorso, sentia-me uma espécie de Stalin
que ri sob os bigodes e pensei: Tratem de trabalhar, meus pobres bolchevistas,
enquanto eu estudo num seminário em Tíflis e depois traço o plano quinquenal. Talvez
porque pela manhã vivia no entusiasmo, de tarde identificava o saber com a
desconfiança. Quis assim estudar alguma coisa que me permitisse dizer o que se
podia afirmar com base em documentos, para distingui-lo do que permanecia matéria
de fé.
Por motivos quase casuais, inscrevi-me num seminário
de história medieval e escolhi como tese o processo dos Templários. A história
dos Templários me havia fascinado, desde o momento em que dera de olhos com os primeiros
documentos. Naquela época em que se lutava contra o poder, indignava-me
generosamente a história do processo, que seria indulgente definir-se como
indiciário, com o qual os Templários foram mandados à fogueira. Mas eu
descobrira bem logo que, mal foram mandados à fogueira, uma turba de caçadores
de mistérios havia tratado de reencontrá-los fosse onde fosse, mas sem jamais
produzirem uma prova. Esse esbanjamento visionário irritava a minha
incredulidade, e decidi não perder tempo com os caçadores de mistérios, atendo-me
somente às fontes da época. Os Templários eram uma ordem monástico-equestre,
que existiu enquanto foi reconhecida pela igreja. Se a igreja havia dissolvido
a ordem, e o havia feito há sete séculos, os Templários não podiam mais
existir, ou se existissem não eram mais os Templários. Com isso cheguei a
fichar pelo menos uma centena de livros, mas no fim acabei só lendo uns trinta.
Entrei em contacto com Jacopo Belbo precisamente por causa dos Templários, no Pílades,
quando estava trabalhando na tese, aí pelos fins de setenta e dois.
O bar Pílades era naqueles tempos o porto franco, a
taverna galáctica onde os seres espaciais de Ophiulco, que assediavam a Terra,
se encontravam sem atritos com os homens do Império que patrulhavam as faixas
de van Allen. Era um velho bar junto aos canais Navigli com balcão de zinco e
bilhar, onde os motorneiros e artesãos da zona vinham de manhãzinha tomar seu
trago. Por volta de setenta e oito, e nos anos seguintes, o Pílades tornou-se
um Rick’s Bar onde na mesma mesa um militante do movimento podia jogar cartas
com um jornalista do quotidiano patronal, que lá ia para um gole no fechamento
do número, quando os primeiros caminhões já partiam para distribuir nas bancas
as mentiras do sistema. Mas no Pílades até mesmo o jornalista se sentia um
proletário explorado, um produtor de mais-valias condenado a montar ideologias
patronais, e os estudantes o absolviam por isso. Entre as onze da noite e as
duas da manhã por ali passavam o gráfico, o arquitecto, o cronista de polícia
que aspirava à terceira página, os pintores da academia de Brera, alguns
escritores de nível médio, e estudantes como eu.
Um mínimo de excitação alcoólica era de rigor e o
velho Pílades, guardando seus garrafões de vinho branco para os motorneiros e
clientes mais aristocráticos, havia substituído o espumante e o Ramazzotti
pelos frisantes DOC para os intelectuais democráticos, deixando o Johnny Walker
para os revolucionários. Poderia escrever a história política daqueles anos
registando os tempos e os modos durante os quais se passou gradativamente do rótulo
vermelho ao Ballantines de doze anos e finalmente ao uísque de malte puro. Com
a chegada do novo público, o Pílades havia mantido o velho bilhar, no qual se
desafiavam na carambola pintores e motorneiros, mas instalara igualmente um flíper.
Para mim uma bolinha durava pouquíssimo e a princípio achava que fosse por
distracção, ou por escassa agilidade manual. Percebi a verdade anos mais tarde
quando vi Lorenza Pellegrini jogar. De início não a notei, mas tive-a na mira
uma noite ao seguir o olhar de Belbo.
Belbo tinha uma maneira especial de estar no bar
como se fosse de passagem (frequentava-o há pelo menos dez anos). Interferia
amiúde nas conversas, no banco ou numa das mesinhas, mas quase sempre para arremessar
uma farpa que esfriava os entusiasmos, qualquer que fosse o assunto que se
discutisse. Gelava também com outra técnica, a das perguntas. Alguém contava um
facto, polarizando a fundo os circunstantes, e logo Belbo encarava o
interlocutor com aqueles seus olhos glaucos, sempre um pouco distraídos,
mantendo o copo à altura dos quadris, como se já há algum tempo tivesse esquecido
de beber, e perguntava: Mas foi assim mesmo? Ou melhor: Mas ele disse mesmo
isto? Não sei porque motivo, mas não havia quem àquela altura não começasse a
duvidar da história, inclusive o narrador. Devia ser pela sua cadência
piemontesa que tornava interrogativas as suas afirmações, e derrisórias as suas
interrogações. Nele, era piemontês até aquele modo de falar sem olhar muito nos
olhos do interlocutor, mas não da maneira como fazem aqueles que fogem do
olhar. O olhar de Belbo não se subtraía ao diálogo. Simplesmente movendo-se
para fixar de improviso uma convergência de paralelas a que não terias prestado
atenção, num ponto impreciso qualquer do espaço, te fazia sentir como se tu, até
então, tivesses obtusamente fixado o único ponto irrelevante». In Umberto
Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.
Cortesia de Difel/JDACT
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