domingo, 3 de abril de 2022

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco. «Simplesmente movendo-se para fixar de improviso uma convergência de paralelas a que não terias prestado atenção, num ponto impreciso qualquer do espaço, te fazia sentir como se tu, até então, tivesses obtusamente fixado o único ponto irrelevante»

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Binah

«(…) Assim eu podia passar a manhã em baixo a discutir ciência proletária e a tarde em cima a praticar o saber aristocrático. Vivia à vontade nessas duas universidades paralelas e não me sentia absolutamente em contradição. Também acreditava que estivesse à porta uma sociedade de iguais, mas me dizia que naquela sociedade era necessário que funcionassem (melhor que antes), por exemplo, os trens, e os revolucionários que me rodeavam não estavam de facto aprendendo a dosar o carvão na caldeira, nem a accionar as agulhas dos desvios ou a organizar uma tabela de horários. Era preciso entanto que alguém estivesse pronto para os trens. Não sem algum remorso, sentia-me uma espécie de Stalin que ri sob os bigodes e pensei: Tratem de trabalhar, meus pobres bolchevistas, enquanto eu estudo num seminário em Tíflis e depois traço o plano quinquenal. Talvez porque pela manhã vivia no entusiasmo, de tarde identificava o saber com a desconfiança. Quis assim estudar alguma coisa que me permitisse dizer o que se podia afirmar com base em documentos, para distingui-lo do que permanecia matéria de fé.

Por motivos quase casuais, inscrevi-me num seminário de história medieval e escolhi como tese o processo dos Templários. A história dos Templários me havia fascinado, desde o momento em que dera de olhos com os primeiros documentos. Naquela época em que se lutava contra o poder, indignava-me generosamente a história do processo, que seria indulgente definir-se como indiciário, com o qual os Templários foram mandados à fogueira. Mas eu descobrira bem logo que, mal foram mandados à fogueira, uma turba de caçadores de mistérios havia tratado de reencontrá-los fosse onde fosse, mas sem jamais produzirem uma prova. Esse esbanjamento visionário irritava a minha incredulidade, e decidi não perder tempo com os caçadores de mistérios, atendo-me somente às fontes da época. Os Templários eram uma ordem monástico-equestre, que existiu enquanto foi reconhecida pela igreja. Se a igreja havia dissolvido a ordem, e o havia feito há sete séculos, os Templários não podiam mais existir, ou se existissem não eram mais os Templários. Com isso cheguei a fichar pelo menos uma centena de livros, mas no fim acabei só lendo uns trinta. Entrei em contacto com Jacopo Belbo precisamente por causa dos Templários, no Pílades, quando estava trabalhando na tese, aí pelos fins de setenta e dois.

O bar Pílades era naqueles tempos o porto franco, a taverna galáctica onde os seres espaciais de Ophiulco, que assediavam a Terra, se encontravam sem atritos com os homens do Império que patrulhavam as faixas de van Allen. Era um velho bar junto aos canais Navigli com balcão de zinco e bilhar, onde os motorneiros e artesãos da zona vinham de manhãzinha tomar seu trago. Por volta de setenta e oito, e nos anos seguintes, o Pílades tornou-se um Rick’s Bar onde na mesma mesa um militante do movimento podia jogar cartas com um jornalista do quotidiano patronal, que lá ia para um gole no fechamento do número, quando os primeiros caminhões já partiam para distribuir nas bancas as mentiras do sistema. Mas no Pílades até mesmo o jornalista se sentia um proletário explorado, um produtor de mais-valias condenado a montar ideologias patronais, e os estudantes o absolviam por isso. Entre as onze da noite e as duas da manhã por ali passavam o gráfico, o arquitecto, o cronista de polícia que aspirava à terceira página, os pintores da academia de Brera, alguns escritores de nível médio, e estudantes como eu.

Um mínimo de excitação alcoólica era de rigor e o velho Pílades, guardando seus garrafões de vinho branco para os motorneiros e clientes mais aristocráticos, havia substituído o espumante e o Ramazzotti pelos frisantes DOC para os intelectuais democráticos, deixando o Johnny Walker para os revolucionários. Poderia escrever a história política daqueles anos registando os tempos e os modos durante os quais se passou gradativamente do rótulo vermelho ao Ballantines de doze anos e finalmente ao uísque de malte puro. Com a chegada do novo público, o Pílades havia mantido o velho bilhar, no qual se desafiavam na carambola pintores e motorneiros, mas instalara igualmente um flíper. Para mim uma bolinha durava pouquíssimo e a princípio achava que fosse por distracção, ou por escassa agilidade manual. Percebi a verdade anos mais tarde quando vi Lorenza Pellegrini jogar. De início não a notei, mas tive-a na mira uma noite ao seguir o olhar de Belbo.

Belbo tinha uma maneira especial de estar no bar como se fosse de passagem (frequentava-o há pelo menos dez anos). Interferia amiúde nas conversas, no banco ou numa das mesinhas, mas quase sempre para arremessar uma farpa que esfriava os entusiasmos, qualquer que fosse o assunto que se discutisse. Gelava também com outra técnica, a das perguntas. Alguém contava um facto, polarizando a fundo os circunstantes, e logo Belbo encarava o interlocutor com aqueles seus olhos glaucos, sempre um pouco distraídos, mantendo o copo à altura dos quadris, como se já há algum tempo tivesse esquecido de beber, e perguntava: Mas foi assim mesmo? Ou melhor: Mas ele disse mesmo isto? Não sei porque motivo, mas não havia quem àquela altura não começasse a duvidar da história, inclusive o narrador. Devia ser pela sua cadência piemontesa que tornava interrogativas as suas afirmações, e derrisórias as suas interrogações. Nele, era piemontês até aquele modo de falar sem olhar muito nos olhos do interlocutor, mas não da maneira como fazem aqueles que fogem do olhar. O olhar de Belbo não se subtraía ao diálogo. Simplesmente movendo-se para fixar de improviso uma convergência de paralelas a que não terias prestado atenção, num ponto impreciso qualquer do espaço, te fazia sentir como se tu, até então, tivesses obtusamente fixado o único ponto irrelevante». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Difel/JDACT

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