Prólogo
«A
transição começa aqui. Tiro o lenço de cabeça preto e guardo na mochila.
Continuo com o cabelo preso num coque atrás da nuca. Logo estaremos no ar.
Endireito as costas e me sento um pouco mais aprumada, deixando que meu corpo
ocupe um espaço maior. Não penso na guerra. Penso num sorvete em Dubai. Lotamos
as cadeiras pequenas, revestidas de vinil, na sala de embarque do Aeroporto
Internacional de Cabul. Meu visto expira daqui a poucas horas. Um grupo
especialmente festivo de expatriados britânicos comemora, pela primeira vez em
meses, o final do período que viveram atrás de arames farpados e sob vigilância
armada. Três agentes humanitárias de jeans e camiseta justa conversam animadas
sobre um balneário. Uma malha preta escorregou do ombro de uma delas, deixando à
mostra uma parte da pele já bronzeada. Olho aquela exposição física tão pouco
habitual para mim. Nos últimos meses, mal tenho visto meu próprio corpo.
Estamos no Verão de 2011, e faz mais de um ano que está em curso o êxodo de
estrangeiros saindo de Cabul. Apesar de um impulso final, o Afeganistão parece
um caso perdido para muitos integrantes das forças armadas e das organizações
humanitárias internacionais. Desde que o presidente Obama anunciou que os
soldados americanos começariam a se retirar do Afeganistão em 2014, a caravana
internacional tem-se apressado em partir. O aeroporto de Cabul é a primeira
paragem na rota da liberdade para aqueles consultores, empreiteiros e
diplomatas confinados, entediados e quase levados à loucura. Os negociantes da
paz e do desenvolvimento internacional procuram novas colocações, onde alguma
experiência com a construção da nação ou com a redução da miséria ainda não
tenha desandado. Já começam a relembrar os primeiros tempos promissores, quase dez
anos atrás, quando o Talibã acabava de ser derrotado e tudo parecia possível.
Quando o Afeganistão ia ser renovado e remodelado como uma democracia laica de
tipo ocidental.
A luz da tarde inunda a pista do
aeroporto. Consigo pegar sinal para o telemóvel ao lado de uma janela e ligo
outra vez para o número de Azita. Um estalido, e temos conexão. Ela está
atordoada depois de uma reunião com o procurador-geral e algumas outras
autoridades. A imprensa também estava lá. Como política, é assim que Azita se
sente à vontade. Posso vê-la sorrir enquanto descreve a cena: Me arrumei com
elegância. E fui diplomática. Todos tiraram meu retrato. A BBC, a Voz da América
e a Tolo TV. Estava com o lenço turquesa, aquele que você viu outro dia. Sabe
qual é. E o casaco preto. Faz uma pausa. E maquiagem. Muita maquiagem. Respiro
fundo. Sou a jornalista. Ela é o assunto. A regra é não mostrar emoções.
Azita nota meu silêncio e logo
começa a me tranquilizar. Em breve as coisas vão melhorar. Tem certeza. Não há
motivo para preocupação. Anunciam meu voo. Tenho de ir. Dizemos as coisas de
sempre. É só um tchau. Não um adeus. Isso. A gente se vê logo. Enquanto me levanto, comprimida junto à
janela para não perder o sinal, fico fantasiando uma volta. Podia ser a cena final
de um filme. Aquele momento de impulso correndo pelo aeroporto para acabar de
acertar tudo. Para terminar bem. E se eu passar mais uma tarde no escritório do
coronel Hotak, ouvindo um sermão por causa do visto vencido? Um pouco de chá, um
carimbo no passaporte e ele me liberta. Enquanto repasso mentalmente a cena,
sei que nunca farei isso. E no que isso, meu acto final, resultaria? Entraria
correndo na casa de Azita ladeada por soldados americanos? Pela Comissão dos
Direitos Humanos do Afeganistão? Ou iria sozinha, com meu canivete e minhas
habilidades de negociadora, impelida pela raiva e pela convicção de que basta
mais um pequeno esforço para consertar o mundo? Ao passar pelo portão de
embarque, as imagens desaparecem. Como sempre. Sigo os outros e, mais uma vez,
faço o que todos nós fazemos. Entro no avião e vou embora». In Jenny
Nordberg, As Meninas Escondidas de Cabul, 2009, ONG Afghan Women’s Writing
Project, 2010, Masha Hamilton, Companhia das Letras, ISBN 978-853-592-696-5.
Cortesia de CdasLetras/JDACT
JDACT, Jenny Nordberg, Literatura,