«(…)
Nosso irmão é na verdade uma menina. Uma das gémeas, de ar ansioso, faz um
sinal com a cabeça assentindo a essas palavras. Então ela se vira para a irmã.
Concorda. Sim, é verdade. Ela pode confirmar. São duas meninas idênticas, de
dez anos de idade, com cabelos pretos, olhos vivazes e algumas pequenas sardas.
Um pouco antes, estávamos dançando ao som do meu iPod, no modo shuffle, enquanto esperávamos a mãe
delas desligar o telefone na outra sala. Passávamos o telefone de ouvido de uma
para outra, mostrando nossos melhores passos. Eu não conseguia acompanhar o
requebrado delas, mas alguns de meus mais inspirados acompanhamentos vocais
ganharam entusiástica aprovação. De facto era boa a ressonância dada pelas paredes
de cimento gelado do apartamento, no labirinto construído pelos soviéticos que
abriga uma parte da pequena classe média de Cabul.
Agora estamos sentadas no sofá de
bordados dourados, onde as gémeas montaram um serviço de chá, consistindo em
canecas de vidro e garrafa térmica de pressão numa bandeja prateada. O mehman khana é o aposento mais
luxuoso num lar afegão, que mostra a abastança e os bons costumes dos donos. Há
fitas com versículos do Alcorão e flores de tecido cor de pêssego numa mesa de
canto, com uma rachadura remendada com fita adesiva. As gémeas,
sentadas no sofá sobre as pernas simetricamente dobradas, ficam um pouco
ofendidas com minha indiferença àquela grande revelação. A gémea número dois se
inclina para a frente: É verdade.
Ele é nossa irmãzinha. Sorrio e concordo de novo com a cabeça. Certo. Claro. Um
retrato emoldurado numa mesinha lateral mostra o irmão posando de gravata e um
pulôver de decote em V, junto com o pai de bigode abrindo um largo sorriso. É a
única foto exposta na sala. As irmãs mais velhas falam um inglês meio trôpego,
mas entusiasmado, extraído dos manuais de escola e da televisão por satélite
embutida no balcão. Talvez tenhamos aqui uma barreira de linguagem.
Certo, digo, querendo ser simpática.
Entendo. Irmã de vocês. Mas me conte,
Benafsha, qual é sua cor favorita? Ela vacila entre vermelho e roxo e depois
passa a pergunta para a irmã, que também dedica uma séria reflexão ao tema. As
gêmeas, ambas de cardigãs alaranjados e calças verdes, parecem agir em plena
sincronia na maioria das coisas. Suas cabeças ficam balançando,
cheias de elastiquinhos de cabelo brilhantes, e só quando uma fala é que a
chuquinha da outra fica imóvel por alguns segundos. Esses
instantes são a chance para um novato conseguir diferenciá-las: o segredo é uma
marquinha de nascença na bochecha de Beheshta. Benafsha significa flor e
Beheshta significa paraíso. Beheshta sugere nosso próximo
tema: Quando crescer, quero ser professora. Quando chega a vez de cada uma
delas fazer uma pergunta, as duas querem saber a mesma coisa: sou casada? Elas ficam
espantadas com a minha resposta, pois, como ressaltam, sou muito velha. Sou até
alguns anos mais velha que
a mãe delas, que, aos 33 anos de idade, é esposa e mãe de quatro filhos. As gémeas
têm mais uma irmã, além do irmãozinho. Digo que a mãe delas também está no parlamento.
Então ela é muitas coisas que eu não sou. Parecem gostar desse quadro. De
repente, o irmão aparece à porta». In Jenny Nordberg, As Meninas Escondidas de
Cabul, 2009, ONG Afghan Women’s Writing Project, 2010, Masha Hamilton,
Companhia das Letras, ISBN 978-853-592-696-5.
Cortesia de CdasLetras/JDACT
JDACT, Jenny Nordberg, Literatura,