Os Cuidados de Abraão
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A litania terminou antes do corpo do carneiro parar de tremer, no estertor da
morte e a faca de Adda-Kalla rasgou-lhe o ventre, expondo as entranhas
fumegantes ao olhar sabedor do vidente Lugal-apindu que as examinou em busca de
indícios e falou sem olhar para Abraão: Os augúrios são-te favoráveis. As
volutas dos intestinos formam uma corda com poucos nós, indicando uma longa
estrada que vais percorrer sem grandes obstáculos. Enfiou as mãos por entre as
vísceras, fez os intestinos desenrolarem-se para dentro de uma bacia e
prosseguiu a sua leitura dos sinais ocultos: A tua vida será
extraordinariamente longa e continuará por gerações sem conta, mas o teu
destino não se cumprirá em Harran. Tare soltou uma exclamação e Abraão
dominou-se a muito custo para não fazer o mesmo. Olhou o rosto de Sarai, mas a
mulher manteve-se impassível, embora atenta à cerimónia. Lugal-apindu remexeu
nas entranhas do carneiro, extraiu o fígado, abriu-o, examinou-o atentamente e,
quando falou, havia surpresa na sua voz: O fígado deste animal sacrificado em
holocausto representa o mundo onde vives, mas a teia das suas linhas é
emaranhada como um labirinto e o saco do fel está fora do lugar! Grande poder
comanda um oráculo assim tão estranho, capaz de obscurecer a minha visão. Ginil-Marduk
trouxe-lhe o modelo em barro de um fígado marcado com linhas divisórias e
anotações para guiar a interpretação dos sinais obscuros. O adivinho comparou
cuidadosamente os dois e concluiu: Posso dizer-te, no entanto, que estes
augúrios confirmam a tua errância pelo mundo, mas não andarás só, serás seguido
por muitos e terás riquezas e poder. E tudo quanto vejo. O silêncio pesou entre
os assistentes, depois de ouvido este oráculo auspicioso, mas ao mesmo tempo
misterioso e assustador e Abraão leu no rosto de Sarai a surpresa maravilhada
de quem vem em busca de uma dádiva e recebe mais do que o seu quinhão. Lugal-apindu
falou novamente: Os deuses criaram os sonhos para indicar o caminho aos homens
quando eles não podem ver o futuro. Conta-nos o teu sonho para que o
interpretemos. Durante a semana anterior à consulta aos videntes, Abraão
pensara demoradamente no sonho e ensaiara o seu discurso com a ajuda de Sarai,
escolhendo bem as palavras para o poder descrever no templo com todos os
pormenores, a fim de que nada daquilo que pudesse ter significado fosse
esquecido. Assim, cerrou os olhos e falou com voz segura: Vejo-me com o meu
rebanho num campo a perder de vista, mas não conheço o lugar. Há um arco-íris
no céu, cujo extremo toca numa montanha a Ocidente e uma águia atravessa-o num
voo majestoso. Uma criança vem ter comigo e aponta com um cajado a montanha ao
longe. Ouço uma voz que me diz: Eu
sou El-Chadai, o Todo-Poderoso, e falo-te para que Me conheças. Deixa a tua
terra, a tua família e a casa do teu pai, e vai para a terra que Eu te indicar.
Farei nascer de ti um grande povo, abençoar-te-ei, engrandecerei o teu nome e
serás uma fonte de bênçãos. Abençoarei aqueles que te abençoarem e amaldiçoarei
aqueles que te amaldiçoarem. E todas as famílias da terra serão em ti
abençoadas. Depois, o menino entrega-me o cajado e eu
desperto do meu sonho». In Deana Barroqueiro, Contos Eróticos do Antigo
Testamento, 2003, Planeta Editora, 2018, ISBN 978-989-777-143-9.
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