Os Cuidados de Abraão
«(…)
Sentiu o desejo invadi-lo como uma onda, o coração bater acelerado e o sangue
pulsar nas veias, quente como fogo, trazendo finalmente a vida e a seiva a um
corpo há muito adormecido. Tomou Sarai com a força dos primeiros tempos, quando
recebera no leito a virgem quase criança que o pai lhe entregara e o
deslumbrara com sua beleza. Para seu espanto, ao penetrar o corpo da mulher
sentiu a mesma resistência, como se o véu da virgindade se tivesse de novo
cerrado e quando Sarai o recebeu dentro de si, gemendo e suspirando com a mesma
intensidade da noite dos esponsais, Abraão deixou seu corpo abrir-se como um
dique ao impulso das sensações e escondeu o rosto nos seios da mulher sufocando
um grito de agonia. O zigurate erguia-se no meio da cidade, sobre uma enorme
plataforma, com uma elevação de cerca de quatro metros, formando um átrio ou
praça, com vários templos secundários e outros edifícios. Atravessando o átrio,
chegava-se a uma nova plataforma, ainda mais elevada, sustentando a torre
sagrada, com mais de cem metros de altura e dividida em três andares. Os dois
primeiros, de forma quadrada, rasgavam-se em terraços abertos, plantados de
árvores e flores que lhes davam o aspecto de jardins suspensos, de belíssimo
efeito. Três lances de escadas de oitenta degraus convergiam do térreo para a
porta monumental do primeiro andar e continuavam até ao último, onde se erguia
o pequeno templo e por elas desfilavam as procissões de sacerdotes e
sacerdotisas, nos seus trajes coloridos de festa, carregados de ofertas que iam
depositar no altar do deus tutelar. Na Casa do Segredo, as ervas de cheiro
ardiam nos incensários e, diante da família de Tare e de outros fiéis, os
sacerdotes davam início às cerimônias do sacrifício do carneiro, entregue por
Sarai no dia anterior, para lerem nas suas entranhas os augúrios do deus. O
animal, de cornos untados com óleos sagrados, jazia amarrado sobre a ara,
balindo de medo. Ao som das harpas, dos tamboris e das flautas dos músicos do
Zigurate, os três sacerdotes depuseram no altar as oblações trazidas por Sarai
e fizeram as libações aos deuses. Em seguida, ajoelharam-se diante do altar e,
virando as cabeças para trás de si, lançaram um esconjuro contra os demónios e
espíritos maléficos, para não prejudicarem a cerimónia com sua presença
funesta. Liam em tabuinhas de argila o texto gravado na graciosa escrita
cuneiforme do Templo, como uma cantilena alternada, terminando num coro a três
vozes: Esconjuração: Demónios
assassinos, bruxos enganadores que sujais o céu, a terra e as águas, que vos
ergueis como o vento para matar os homens no deserto e secar o ventre das
mulheres, Marduk, Senhor do Céu e da Terra, vos há-de perseguir com castigos
terríveis para vos fazer sofrer como vós nos fazeis sofrer! Glória a Marduk,
protetor dos homens!
Os
músicos silenciaram os instrumentos e os sacerdotes acercaram-se da ara do
sacrifício. Lugal-apindu, o adivinho, tomou a cabeça do animal pelos cornos, puxando-a
para trás e expondo-lhe o pescoço revestido de sedoso pêlo branco,
Ginil-Marduk, o esconjurador, segurou o vaso para recolher o sangue e
Adda-Kalla, o purificador, cortou-lhe a garganta com a faca ritual. Enquanto o
sangue corria, os sacerdotes prostraram-se diante da imagem do deus e iniciaram
um salmo laudatório do suplicante, de modo a justificar o favor e as benesses
que Marduk lhe iria conceder: Nunca
Abraão ofendeu os deuses, ou foi acusado de mentir. Jamais desprezou pai e mãe
ou semeou a discórdia entre pai e filho, entre o irmão e seu irmão. Marduk,
concede-lhe o teu favor! Nunca Abraão vendeu animais doentes ou roubou no peso
da sua carne, nem disse não em vez de sim, nem sim em vez de não. Marduk,
concede-lhe o teu favor! Nunca Abraão entrou de má fé na casa do seu vizinho,
não roubou nem fez correr o sangue do seu vizinho, jamais desejou a mulher do
seu vizinho. Marduk, concede-lhe o teu favor! Abraão é um homem justo e piedoso
Merecedor da protecção divina. Marduk, indica-lhe o caminho!» In
Deana Barroqueiro, Contos Eróticos do Antigo Testamento, 2003, Planeta
Editora, 2018, ISBN 978-989-777-143-9.