quarta-feira, 25 de maio de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Afonso Henriques mirou-a, mas ela desviou o olhar para o rio. Sois amigos?, perguntou ele. Chamoa, incomodada com a insinuação, continuou a admirar as plácidas águas»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126

«(…) Sorrateira, minha prima Raimunda seguiu o jovem bastardo. Como a cavalo atrairia as atenções dos passeantes, decidiu ir a pé e saiu da estrada, cruzando os campos a correr, para encurtar distâncias, vendo que Ramiro fazia o mesmo, trinta metros à sua frente. Algum tempo depois, já afastados do castelo mais de uma légua, verificou que o príncipe e a donzela galega se dirigiam a um pequeno curso de água, a que os locais chamavam rio da Loba. Aproximou-se, com infinita cautela, e quando eles desmontaram e Afonso Henriques deu a mão à galega, para a ajudar, Raimunda percebeu que Ramiro não iria cumprir as ordens do pai. Atrás de uma árvore, o rapaz limitava-se a observar o par de encantados que se sentara na erva, à borda de água. Uma grande desgraça estava prestes a acontecer, e nem Ramiro, nem minha prima Raimunda a evitaram, como podiam. Se o tivessem feito, talvez Portugal não tivesse nascido com um filho em guerra com a mãe.

Deitada no chão entre as ervas, protegida por uns pedregulhos e observando o seu amado, minha prima Raimunda estava a transbordar de indignação com meu pai e meu tio. Porque não haviam eles impedido o príncipe de cortejar Chamoa, se a sabiam destinada a Paio Soares? E porque não o impedira ela, perguntei eu, no dia em que me contou o que se passou? Porque não o impedira Ramiro? Minha prima não me soube responder. Mesmo estando ambos transtornados de ciúmes, ele porque amava Chamoa, ela porque se apaixonara por Afonso Henriques, nenhum foi capaz de estragar aquele primeiro encontro amoroso. Os seres humanos, por vezes, são tão tortos que parecem leais e tão manhosos que parecem inteligentes. À beira do rio da Loba, Afonso Henriques recordou a Chamoa as suas imperfeições de nascença. Viera ao mundo com as pernas curtas e tortas, e a deficiência fora vista como mau presságio, chegando dona Teresa a considera-la uma prova inexorável de que nunca haveria de parir um varão de jeito, razão por que se recusava a pegar nele. Por isso, foi entregue a terceiros, e o escolhido foi meu pai, Egas Moniz de Ribadouro, e minha mãe, Dordia Viegas. Perto do local onde a nossa família vivia, corria um riacho, à beira do qual existiam as ruínas de uma igreja. Um dia, Nossa Senhora apareceu em sonhos a meu pai, benzeu aquelas águas e aconselhou a que lá se banhasse o aleijado menino. Dordia assim fizera, e o milagre das águas, bem como o amor de minha mãe, curaram-no.

Ela massajava-o nas pernas, passava-lhe leite de cabra nos músculos, colocava-lhe mezinhas na pele, e durante anos banhou-o no riacho, salvando-o com o seu carinho e com a ajuda de Nossa Senhora, a quem meu pai agradeceu, mandando construir no local o Mosteiro de Cárquere. No final da narrativa, Chamoa relevou o seu espanto: Haveis chamado mãe a Dordia Viegas, que Deus a tenha. Afonso Henriques olhou para o rio à frente deles. Uma mãe tem de estar perto dos filhos, de os amparar quando choram ou quando têm frio e medo, e de abraçá-los quando estão felizes. Dordia fez tudo isso, foi ela a minha mãe. Chamoa, um pouco a medo, perguntou: E dona Teresa? O príncipe ignorou a pergunta, mantendo o olhar pousado nas águas que corriam suaves e lentas. Depois, afirmou: O milagre resultou. Consigo correr atrás de javalis, ainda hoje o fiz. Os olhos verdes de Chamoa iluminaram-se, com ligeira malícia. E atrás das moças? Ele respondeu-lhe com solenidade: Um príncipe não corre atrás de qualquer uma, só de quem quer. Chamoa corou, lisonjeada com aquelas palavras, mas deixou-se ficar em silêncio até que ele perguntou: Vosso primo, Mem Tougues, tendes afecto por ele? A rapariga franziu a testa, mas aceitou que, sendo ele príncipe, decidia o que perguntava e ao que respondia. Conhecemo-nos desde crianças, gostamos da companhia um do outro. É bom rapaz, garantiu. Afonso Henriques mirou-a, mas ela desviou o olhar para o rio. Sois amigos?, perguntou ele. Chamoa, incomodada com a insinuação, continuou a admirar as plácidas águas». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

 Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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