NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.
Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126
«(…) Sorrateira, minha prima
Raimunda seguiu o jovem bastardo. Como a cavalo atrairia as atenções dos
passeantes, decidiu ir a pé e saiu da estrada, cruzando os campos a correr,
para encurtar distâncias, vendo que Ramiro fazia o mesmo, trinta metros à sua
frente. Algum tempo depois, já afastados do castelo mais de uma légua, verificou
que o príncipe e a donzela galega se dirigiam a um pequeno curso de água, a que
os locais chamavam rio da Loba. Aproximou-se, com infinita cautela, e quando
eles desmontaram e Afonso Henriques deu a mão à galega, para a ajudar, Raimunda
percebeu que Ramiro não iria cumprir as ordens do pai. Atrás de uma árvore, o
rapaz limitava-se a observar o par de encantados que se sentara na erva, à
borda de água. Uma grande desgraça estava prestes a acontecer, e nem Ramiro,
nem minha prima Raimunda a evitaram, como podiam. Se o tivessem feito, talvez
Portugal não tivesse nascido com um filho em guerra com a mãe.
Deitada no chão entre as ervas,
protegida por uns pedregulhos e observando o seu amado, minha prima Raimunda
estava a transbordar de indignação com meu pai e meu tio. Porque não haviam
eles impedido o príncipe de cortejar Chamoa, se a sabiam destinada a Paio
Soares? E porque não o impedira ela, perguntei eu, no dia em que me contou o
que se passou? Porque não o impedira Ramiro? Minha prima não me soube responder.
Mesmo estando ambos transtornados de ciúmes, ele porque amava Chamoa, ela
porque se apaixonara por Afonso Henriques, nenhum foi capaz de estragar aquele primeiro
encontro amoroso. Os seres humanos, por vezes, são tão tortos que parecem leais
e tão manhosos que parecem inteligentes. À beira do rio da Loba, Afonso
Henriques recordou a Chamoa as suas imperfeições de nascença. Viera ao mundo
com as pernas curtas e tortas, e a deficiência fora vista como mau presságio,
chegando dona Teresa a considera-la uma prova inexorável de que nunca haveria
de parir um varão de jeito, razão por que se recusava a pegar nele. Por isso,
foi entregue a terceiros, e o escolhido foi meu pai, Egas Moniz de Ribadouro, e
minha mãe, Dordia Viegas. Perto do local onde a nossa família vivia, corria um
riacho, à beira do qual existiam as ruínas de uma igreja. Um dia, Nossa Senhora
apareceu em sonhos a meu pai, benzeu aquelas águas e aconselhou a que lá se
banhasse o aleijado menino. Dordia assim fizera, e o milagre das águas, bem como
o amor de minha mãe, curaram-no.
Ela massajava-o nas pernas,
passava-lhe leite de cabra nos músculos, colocava-lhe mezinhas na pele, e
durante anos banhou-o no riacho, salvando-o com o seu carinho e com a ajuda de
Nossa Senhora, a quem meu pai agradeceu, mandando construir no local o Mosteiro
de Cárquere. No final da narrativa, Chamoa relevou o seu espanto: Haveis
chamado mãe a Dordia Viegas, que Deus a tenha. Afonso Henriques olhou para o
rio à frente deles. Uma mãe tem de estar perto dos filhos, de os amparar quando
choram ou quando têm frio e medo, e de abraçá-los quando estão felizes. Dordia
fez tudo isso, foi ela a minha mãe. Chamoa, um pouco a medo, perguntou: E dona
Teresa? O príncipe ignorou a pergunta, mantendo o olhar pousado nas águas que corriam
suaves e lentas. Depois, afirmou: O milagre resultou. Consigo correr atrás de
javalis, ainda hoje o fiz. Os olhos verdes de Chamoa iluminaram-se, com ligeira
malícia. E atrás das moças? Ele respondeu-lhe com solenidade: Um príncipe não
corre atrás de qualquer uma, só de quem quer. Chamoa corou, lisonjeada com
aquelas palavras, mas deixou-se ficar em silêncio até que ele perguntou: Vosso
primo, Mem Tougues, tendes afecto por ele? A rapariga franziu a testa, mas
aceitou que, sendo ele príncipe, decidia o que perguntava e ao que respondia. Conhecemo-nos
desde crianças, gostamos da companhia um do outro. É bom rapaz, garantiu. Afonso
Henriques mirou-a, mas ela desviou o olhar para o rio. Sois amigos?, perguntou
ele. Chamoa, incomodada com a insinuação, continuou a admirar as plácidas águas».
In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,