quinta-feira, 23 de junho de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Pode lá ser! O rei morreu naquela batalha... Exactamente. E vós dais importância a mais um impostor? Não fostes vós que me contastes terem aparecido já uns três outros e... e, uma vez desmascarados..., enforcados, eu sei»

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O Sósia

«(…) Procura-se o vulto do príncipe e logo se topa, nas pregas da noite, no esconderijo dos segredos, com o veneno, o punhal do assassino, o egoísmo do adulador, a hipocrisia do traidor... É verdade, Senhor. Lia aquela parte em que se diz que, para se conservar um reino conquistado, é preciso extinguir a família do príncipe... E eu fui traidor do meu próprio reino. Com levá-lo à ruína e a ser ocupado por estranhos, matei-me a mim próprio e, não prevenindo descendência, extingui a família do príncipe... Não, meu Senhor, não, acudia vivamente frei Crisóstomo. Vós ressuscitastes. Estais aqui. O que esse texto quer dizer, isso sim, é que todo o cuidado é pouco, aqui e agora, mesmo entre nós, com o embaixador espanhol don Inigo Mendoça. Sim, ajudou Pimentel. É de recear o que fará quando souber da vossa presença, Senhor, aqui em Veneza.

E quem de nós lho iria dizer?, perguntava Nuno Costa. Daqui não sairá qualquer inconfidência, confirmou com rispidez Pantaleão Pessoa. Todavia, de nada valeu a firmeza de Pessoa, que a traição já se havia instalado entre nós. Uma noite... Na noite húmida, embrulhado em capa negra, a aba larga do chapéu derrubada sobre a cara, caminha estugado um vulto, cosido cauteloso com as paredes das casas. Junto do palácio do embaixador de Espanha, passa a monumental frontaria, rodeia o edifício por uma viela e, depois de vigiar a todos os lados, estaca em frente de uma pequena porta das traseiras, a que bate três pancadas espaçadas. A portinhola abriu-se e ele sumiu-se no interior da casa. Caminhou por um corredor até um pequeno vestíbulo que dava para a copa e as escadas de serviço. Um mordomo, acompanhado de um criado com uma candeia na mão, indicou-lhe o caminho, depois de lhe ter pegado no chapéu, no capote e nas luvas. Por aqui, senhor, disse e, subidas as escadas e passada uma comprida galeria, abriu uma porta e introduziu a visita no salão do embaixador. Ah! Sois vós, Nuno Costa, saudou don Inigo Mendoça. Que novidades me trazeis? Estrondosas, senhor embaixador, completamente estrondosas!, disse o português sentando-se.

E, por mais de uma hora, estiveram conversando a meia voz. Acompanhado do seu secretário, o embaixador de Espanha, apesar da idade avançada, atravessou rapidamente a piazzetta e dirigiu-se ao portal do palácio do Doge. Entrou, passou o arco Foscari sem olhar para as estátuas de Adão e Eva, cópias de Rizzo, galgou a grande escadaria, entre o Marte e o Neptuno de Sansovino, e subiu ao salão do Conselho, em que foi recebido pelo doge, Já sabeis decerto, senhor, disse, após as saudações, que temos em Espanha novo rei? Quê! O rei Filipe morreu? ... e agora subiu ao trono seu filho Filipe terceiro. Deus tenha em sua glória o pai e cubra de bênçãos o filho. Amém. Mas, além desta notícia, que creio ter-vos trazido em primeira mão, venho comunicar-vos assunto que se me afigura grave e solicitar a vossa pronta intervenção. Credo, don Inigo! De que se trata? Apareceu em Veneza, vai para seis meses, um desconhecido que pretende ser o rei Sebastião de Portugal. Pode lá ser! O rei morreu naquela batalha... Exactamente. E vós dais importância a mais um impostor? Não fostes vós que me contastes terem aparecido já uns três outros e... e, uma vez desmascarados..., enforcados, eu sei. E então? Então..., o caso não teria importância, se não tivesse assumido proporções alarmantes. Como assim? Um grupo de portugueses aqui residentes reconheceu-o. Falaram com o núncio apostólico, foram ao papa..., e o papa...?, reconheceu-o... Que me dizeis?, ... e parece que vai emitir uma bula... Estais bem informado. A ambição, senhor, e o dinheiro..., sabeis como é..., sempre corromperam os fracos. Um traidor entre eles?  Traidor! Que nome tão feio! Um servidor de Sua Majestade o rei Filipe». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

 Cortesia de Difel/JDACT

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