O Sósia
«(…)
Procura-se o vulto do príncipe e logo se topa, nas pregas da noite, no
esconderijo dos segredos, com o veneno, o punhal do assassino, o egoísmo do
adulador, a hipocrisia do traidor... É verdade, Senhor. Lia aquela parte em que
se diz que, para se conservar um reino conquistado, é preciso extinguir a
família do príncipe... E eu fui traidor do meu próprio reino. Com levá-lo à
ruína e a ser ocupado por estranhos, matei-me a mim próprio e, não prevenindo
descendência, extingui a família do príncipe... Não, meu Senhor, não, acudia
vivamente frei Crisóstomo. Vós ressuscitastes. Estais aqui. O que esse texto
quer dizer, isso sim, é que todo o cuidado é pouco, aqui e agora, mesmo entre
nós, com o embaixador espanhol don Inigo Mendoça. Sim, ajudou Pimentel. É de
recear o que fará quando souber da vossa presença, Senhor, aqui em Veneza.
E
quem de nós lho iria dizer?, perguntava Nuno Costa. Daqui não sairá qualquer
inconfidência, confirmou com rispidez Pantaleão Pessoa. Todavia, de nada valeu
a firmeza de Pessoa, que a traição já se havia instalado entre nós. Uma
noite... Na noite húmida, embrulhado em capa negra, a aba larga do chapéu
derrubada sobre a cara, caminha estugado um vulto, cosido cauteloso com as
paredes das casas. Junto do palácio do embaixador de Espanha, passa a
monumental frontaria, rodeia o edifício por uma viela e, depois de vigiar a
todos os lados, estaca em frente de uma pequena porta das traseiras, a que bate
três pancadas espaçadas. A portinhola abriu-se e ele sumiu-se no interior da
casa. Caminhou por um corredor até um pequeno vestíbulo que dava para a copa e
as escadas de serviço. Um mordomo, acompanhado de um criado com uma candeia na
mão, indicou-lhe o caminho, depois de lhe ter pegado no chapéu, no capote e nas
luvas. Por aqui, senhor, disse e, subidas as escadas e passada uma comprida
galeria, abriu uma porta e introduziu a visita no salão do embaixador. Ah! Sois
vós, Nuno Costa, saudou don Inigo Mendoça. Que novidades me trazeis? Estrondosas,
senhor embaixador, completamente estrondosas!, disse o português sentando-se.
E,
por mais de uma hora, estiveram conversando a meia voz. Acompanhado do seu
secretário, o embaixador de Espanha, apesar da idade avançada, atravessou
rapidamente a piazzetta e dirigiu-se ao portal do palácio do Doge. Entrou,
passou o arco Foscari sem olhar para as estátuas de Adão e Eva, cópias de Rizzo,
galgou a grande escadaria, entre o Marte e o Neptuno de Sansovino, e subiu ao
salão do Conselho, em que foi recebido pelo doge, Já sabeis decerto, senhor,
disse, após as saudações, que temos em Espanha novo rei? Quê! O rei Filipe
morreu? ... e agora subiu ao trono seu filho Filipe terceiro. Deus tenha em sua
glória o pai e cubra de bênçãos o filho. Amém. Mas, além desta notícia, que
creio ter-vos trazido em primeira mão, venho comunicar-vos assunto que se me
afigura grave e solicitar a vossa pronta intervenção. Credo, don Inigo! De que
se trata? Apareceu em Veneza, vai para seis meses, um desconhecido que pretende
ser o rei Sebastião de Portugal. Pode lá ser! O rei morreu naquela batalha... Exactamente.
E vós dais importância a mais um impostor? Não fostes vós que me contastes
terem aparecido já uns três outros e... e, uma vez desmascarados...,
enforcados, eu sei. E então? Então..., o caso não teria importância, se não
tivesse assumido proporções alarmantes. Como assim? Um grupo de portugueses
aqui residentes reconheceu-o. Falaram com o núncio apostólico, foram ao papa...,
e o papa...?, reconheceu-o... Que me dizeis?, ... e parece que vai emitir uma
bula... Estais bem informado. A ambição, senhor, e o dinheiro..., sabeis como
é..., sempre corromperam os fracos. Um traidor entre eles? Traidor! Que nome tão feio! Um servidor de Sua
Majestade o rei Filipe». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
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JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,