O Sósia
«(…)
... e aqui estás, disse o arcebispo. Que queres de mim?, ... que Vossa
Eminência ajude o infeliz rei de Portugal a ser recebido pelo papa. O papa
há-de querer provas de quem és. Os meus amigos portugueses darão de mim
testemunho. Quem são eles? Proscritos, como é natural, pelo amor que dedicam à
sua pátria e ao seu rei. Cuidando que eu havia morrido, tomaram a parte do rei
legítimo, meu primo dom António, prior do Crato. Com a derrota de Alcântara, com as
derrotas dos Açores, exilaram-se com o rei em Inglaterra, em França, na
Flandres, aqui, fugidos à vingança de Filipe...
Dom
António morreu e eles, sabendo do meu aparecimento, rejubilaram e
acolheram-me... Pessoas gradas, julgo. ... e de autoridade. Frei António Sousa...
É frade? ... dominicano. Filho de um embaixador em Espanha, mestre de teologia,
grande pregador e outras partes... Frei Luís dos Anjos, agostinho, cronista da
ordem. Dom António Brito Pimentel, fidalgo de minha casa, Nuno Costa, médico insigne,
e muitos outros, Pantaleão Pessoa, o cónego Lourenço Costa, Sebastião Figueira,
Manuel Brito Almeida... De Roma deve estar a chegar um amigo importante, dom
Cristóvão Portugal, filho do prior do Crato... Sei quem é. ... o padre José
Teixeira... Frei José Teixeira, o esmoler do rei de França e protegido de
Catarina Médicis? Esse mesmo. Sábio homem. Não deve tardar a chegar de Paris...
Conheço a sua obra. ... e os dominicanos frei Crisóstomo Visitação e frei Estêvão
Sampaio... O arcebispo levantou-se e passeou pela sala. Os outros dois levantaram-se
também.
Dentro
de umas semanas, disse o prelado, parto para Roma convocado para um sínodo.
Quererás aproveitar?... Deus seja louvado e sua mãe Maria Santíssima! Julgava
eu nunca mais me ser dado ouvir os sinos de Roma, a cidade leonina, e eis que
de novo os de São Pedro, de Santa Maria Trastevere, de Sant'Agnese, de San
Giovanni in Laterano, de Santa Maria Maggiore e muitos outros, outros tais e
outros tantos, badalando, repicando, tilintando, me enchem ouvidos e alma. Agora
acredito que finalmente a minha vida vai mudar e terá fim o meu calvário. O
arcebispo de Espálato, António Graziani, conseguiu que o papa Clemente me
recebesse em audiência e aos meus companheiros. Embora sem as insígnias e a
magnificência que seriam próprias de minha qualidade, apresentei-me honestamente
vestido de modo a que me tomassem por quem era, nas condições de vicissitude em
que me encontrava. O luxo do Sacro Palácio, as longas galerias lustrosas de obras
de arte, que os meus amigos olhavam com assombro, não chegaram para romper-me o
turbilhão interior. O camareiro que nos conduzia fez-nos parar diante da alta
porta da câmara papal. Ali aguardámos até que dentro se ouviu uma campainha e
as portadas se abriram. Sua Santidade estava sentado e tinha à sua esquerda o
arcebispo de Espálato e à direita o cardeal camerlengo. Entrámos de cabeça
descoberta, quando o camareiro me deu passagem e a meus companheiros. Com um
joelho em terra, aguardámos a bênção do papa. Então, a um sinal do camerlengo, avancei
até ao tapete de veludo em que Sua Santidade tinha os pés. Ajoelhei, o
camerlengo levantou a fímbria da batina do papa, a quem eu beijei o pé direito
calçado de chapim vermelho com uma cruz branca. Levantei-me e então o arcebispo
disse: Sua Santidade tem a bondade de te ouvir». In Fernando Campos, A Ponte dos
suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,