Silves, Junho de 1141
«(…) Futuro
poderoso, bem mais gostoso.
Já
no palácio, Mem encontrou Zaida nos jardins. Há meses que não dormiam juntos,
mas ela abraçou-o com um carinho demasiado intenso, apertando-o contra o peito
de forma nada inocente. Tenho saudades de vós..., murmurou a princesa. Mantinha
viva a ternura do passado, desejava continuar a vê-lo, podiam encontrar-se em
segredo. Aliás, recordou a princesa, as mulheres de Córdova nunca haviam amado
só um homem, essa tradição durava há séculos, queria honrá-la. Por isso, pegou na
mão do almocreve e murmurou: Mem querido...
Aquela
era a senha de felicidade, o convite para Mem tomá-la, a palavra que abria as
portas do seu corpo. Mas não era possível. Zaida não podia ter o melhor dos
dois mundos, um emir no palácio e um almocreve atrás de uma laranjeira no
jardim. A guerra vai começar..., alertou Mem, dando um passo atrás, para melhor
combater o feitiço que ela um dia lhe lançara. Logo após a derrota dos
muçulmanos na batalha de Ourique, a princesa Zaida zangara-se violentamente com
a irmã Fátima, com a prima Raimunda e com os respectivos maridos, Abu Zhakaria,
governador de Santarém, e Ismar, príncipe de Córdova. As acusações mútuas de
traição, a distribuição de culpas pela
derrota perante os portucalenses, o acinte das duas mulheres contra ela, recipitaram
a ruptura, e Zaida, acompanhada por Mem, fugira dos outros para se juntar a Ibn
Qasi. Ismar, Raimunda, Fátima e Zhakaria vão guerrear-vos!, previu Mem, sugerindo
uma nova estratégia. Seria inteligente propor um pacto ao rei de Portugal. Ibn
Qasi precisa de aliados. O almocreve, apesar de a amar, também queria a glória
dela. Contudo, naquele momento, ela não pensava em guerras e insistiu: Mem
querido...
Roçou-se,
dengosa, enquanto ele reparava nos criados que cirandavam pelo jardim ou
espreitavam à varanda. Não podemos..., disse Mem. Falai com Ibn Qasi. E não vos
esqueçais de denunciar-lhe o alcaide de Mértola, esse estafermo!
Terminada a batalha de Ourique, Mem e Zaida tinham rumado a
Mértola, onde haviam passado mais de um ano à espera de Ibn Qasi, entretanto
ausente em Marrocos.
Pretendente distante,
diverte-se o amante.
Nesses
dias, Mem dormira sempre com a princesa, mas enquanto esperavam pelo regresso
do sufi deram-se conta de que o indivíduo a quem Ibn Qasi confiara o
governo da cidade de Mértola era um falso. Uma víbora..., ajuizara certo dia
Zaida. Ibn Wasir nascera árabe e descendia de sírios, mas era a sua propensão
para a traição que os preocupava. As primeiras vezes que conviveram com aquele
ser curto de perna e magro de carnes, que falava depressa de mais, cuspia
saliva e parecia sempre nervoso, Mem e Zaida notaram que Ibn Wasir tanto
proclamava como essencial a falência estrondosa do califado almorávida de
Marraquexe, liderado por Ali Yusuf, como se alvoroçava contra o perigo do
avanço dos almóadas, os novos aliados de Ibn Qasi. Talvez o meu mestre se tenha
equivocado, murmurara o desleal.
Mais desagradável ainda fora a suspeita que ele lançara sobre as
lealdades religiosas de Zaida. Haveis vivido muito tempo entre cristãos?,
perguntara Wasir, com óbvia malícia. Disseram-me que haveis pensado em
converter-vos, para poderdes desposar Afonso Henriques... Incomodada, nas
semanas seguintes a princesa evitou o alcaide e limitou-se a conviver com Mem,
mas depressa a beleza e a afabilidade serena do amigo começaram a causar-lhe
sarilhos». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Os
Conquistadores de Lisboa, A Intriga de Compostela, Oficina do Livro, Casa das
Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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