domingo, 19 de junho de 2022

Os Conquistadores de Lisboa. Domingos Amaral 3. «Aquela era a senha de felicidade, o convite para Mem tomá-la, a palavra que abria as portas do seu corpo. Mas não era possível»

 

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Silves, Junho de 1141

«(…) Futuro poderoso, bem mais gostoso.

Já no palácio, Mem encontrou Zaida nos jardins. Há meses que não dormiam juntos, mas ela abraçou-o com um carinho demasiado intenso, apertando-o contra o peito de forma nada inocente. Tenho saudades de vós..., murmurou a princesa. Mantinha viva a ternura do passado, desejava continuar a vê-lo, podiam encontrar-se em segredo. Aliás, recordou a princesa, as mulheres de Córdova nunca haviam amado só um homem, essa tradição durava há séculos, queria honrá-la. Por isso, pegou na mão do almocreve e murmurou: Mem querido...

Aquela era a senha de felicidade, o convite para Mem tomá-la, a palavra que abria as portas do seu corpo. Mas não era possível. Zaida não podia ter o melhor dos dois mundos, um emir no palácio e um almocreve atrás de uma laranjeira no jardim. A guerra vai começar..., alertou Mem, dando um passo atrás, para melhor combater o feitiço que ela um dia lhe lançara. Logo após a derrota dos muçulmanos na batalha de Ourique, a princesa Zaida zangara-se violentamente com a irmã Fátima, com a prima Raimunda e com os respectivos maridos, Abu Zhakaria, governador de Santarém, e Ismar, príncipe de Córdova. As acusações mútuas de traição, a distribuição de culpas pela derrota perante os portucalenses, o acinte das duas mulheres contra ela, recipitaram a ruptura, e Zaida, acompanhada por Mem, fugira dos outros para se juntar a Ibn Qasi. Ismar, Raimunda, Fátima e Zhakaria vão guerrear-vos!, previu Mem, sugerindo uma nova estratégia. Seria inteligente propor um pacto ao rei de Portugal. Ibn Qasi precisa de aliados. O almocreve, apesar de a amar, também queria a glória dela. Contudo, naquele momento, ela não pensava em guerras e insistiu: Mem querido...

Roçou-se, dengosa, enquanto ele reparava nos criados que cirandavam pelo jardim ou espreitavam à varanda. Não podemos..., disse Mem. Falai com Ibn Qasi. E não vos esqueçais de denunciar-lhe o alcaide de Mértola, esse estafermo!

Terminada a batalha de Ourique, Mem e Zaida tinham rumado a Mértola, onde haviam passado mais de um ano à espera de Ibn Qasi, entretanto ausente em Marrocos.

Pretendente distante, diverte-se o amante.

Nesses dias, Mem dormira sempre com a princesa, mas enquanto esperavam pelo regresso do sufi deram-se conta de que o indivíduo a quem Ibn Qasi confiara o governo da cidade de Mértola era um falso. Uma víbora..., ajuizara certo dia Zaida. Ibn Wasir nascera árabe e descendia de sírios, mas era a sua propensão para a traição que os preocupava. As primeiras vezes que conviveram com aquele ser curto de perna e magro de carnes, que falava depressa de mais, cuspia saliva e parecia sempre nervoso, Mem e Zaida notaram que Ibn Wasir tanto proclamava como essencial a falência estrondosa do califado almorávida de Marraquexe, liderado por Ali Yusuf, como se alvoroçava contra o perigo do avanço dos almóadas, os novos aliados de Ibn Qasi. Talvez o meu mestre se tenha equivocado, murmurara o desleal.

Mais desagradável ainda fora a suspeita que ele lançara sobre as lealdades religiosas de Zaida. Haveis vivido muito tempo entre cristãos?, perguntara Wasir, com óbvia malícia. Disseram-me que haveis pensado em converter-vos, para poderdes desposar Afonso Henriques... Incomodada, nas semanas seguintes a princesa evitou o alcaide e limitou-se a conviver com Mem, mas depressa a beleza e a afabilidade serena do amigo começaram a causar-lhe sarilhos». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Os Conquistadores de Lisboa, A Intriga de Compostela, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 

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