quarta-feira, 1 de junho de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Quando saí do albergue, fiquei indeciso sobre que fazer da minha vida. Ainda se tivesse ali comigo a jovialidade de Telo, o seu engenho, as suas manhas em resolver as adversidades...»

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O Sósia

«(…) Nessa mesma noite... Sim, foi nessa mesma noite. Dormia eu a sono solto, não dei por nada senão de manhã, quando me levantei. Levaram-me tudo: dinheiro, credências, roupas e desapareceram. De um dia para o outro regressei à mais completa miséria e via-me impossibilitado de me apresentar a Sua Santidade. Apiedou-se de mim a mulher do estalajadeiro, que, além de me dar bragas, pelote, um velho jubão e uma capa, levou o marido a perdoar-me o aluguer da aposentadoria daquela noite.

Quando saí do albergue, fiquei indeciso sobre que fazer da minha vida. Ainda se tivesse ali comigo a jovialidade de Telo, o seu engenho, as suas manhas em resolver as adversidades... Alguma coisa, no entanto, eu aprendera com ele. Isso me animaria. Atravessei a ponte, passei o castelo e, metido comigo, foi com surpresa que súbito me vi a caminhar rodeado da multidão. Deixei-me levar e daí a pouco entrava na basílica de São Pedro. Era domingo. O papa oficiava acolitado por quatro cardeais, mas a pompa das cerimónias e a excessiva riqueza do templo não se me quadravam com o abatimento de alma e eu saí dali, Deus me perdoe, sem ser capaz de rezar um padre-nosso. Dei em cuidar nisso por muito tempo, enquanto que ia saindo da cidade... Não se me acomoda o roteiro interior ao itinerário externo dos meus passos. Olho em voragem os fantasmas do passado e do presente que me surgem no caminho, a fúria do tempo em destruir a memória, a fúria do momento em, sobre aquela, construir outra..., ossadas de esbeltas colunas de templos romanos, olha acolá o de Saturno..., templos em ruína, templos em construção, morrem uns deuses, nascem outros..., destroços de arcos antigos que um dia foram triunfais como os que agora aí estão sendo edificados com igual arte à espera de igual sorte, o de Tito comemora o saque de Jerusalém, o de Constantino celebra a vitória sobre o imperador Maxêncio na batalha da ponte Mílvio. Deveu-se, rezavam as lendas, a tê-lo um anjo exortado em sonho a que marcasse um qui e um ró nos escudos dos seus soldados ou a ter-lhe aparecido nos céus, ia a refrega em meio, a cruz do Salvador, in hoc signo vinces..., anfiteatros, arenas, colossos, fontes e repuxos, deuses e deusas desnudados os corpos de mármore, mortos como a eternidade por entre o gargalhar cósmico da água..., a coluna de Trajano, memorando a conquista da Dácia, lembra a edificação de um império que levou séculos a tornar-se pó... A mim bastaram-me três horas para pulverizar o meu...

Saí de Roma de meu vagar, seguindo algum tempo o curso do Tibre, desesperançado de alguma vez aí voltar a cumprir a minha tenção de solicitar ao sumo pontífice a necessária ajuda, sem alento sequer para prosseguir no propósito a que me obrigara o velho eremitão meu companheiro do Sinai, que Deus haja. Peregrinando e esmolando ao acaso pelos santuários de Itália, transpus em breve os Apeninos, visitei Assis, na margem do Chiascio, aonde entrei pela porta de São Pedro, a basílica no cimo do monte Subásio, desci para o Adriático a rezar na casa santa de Nossa Senhora do Loreto... Mas para que hei-de eu estar a maçar-vos com as minhas desaventuras? Um pouco mais de paciência. Acabarei já... Dormia nos portais das igrejas, debaixo de pontes, na espessura da floresta, nas grutas dos montes... Subi a Ancona, a Ravena, a Ferrara... Depois de Mântua e Verona, acolhi-me à piedade de meu padre Santo António, em Pádua, e finalmente vim ter a esta Veneza em que, a Deus graças, encontrei conterrâneos meus que me reconheceram e ajudaram...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,