O Sósia
«(…)
Nessa mesma noite... Sim, foi nessa mesma noite. Dormia eu a sono solto, não
dei por nada senão de manhã, quando me levantei. Levaram-me tudo: dinheiro,
credências, roupas e desapareceram. De um dia para o outro regressei à mais completa
miséria e via-me impossibilitado de me apresentar a Sua Santidade. Apiedou-se
de mim a mulher do estalajadeiro, que, além de me dar bragas, pelote, um velho
jubão e uma capa, levou o marido a perdoar-me o aluguer da aposentadoria
daquela noite.
Quando
saí do albergue, fiquei indeciso sobre que fazer da minha vida. Ainda se
tivesse ali comigo a jovialidade de Telo, o seu engenho, as suas manhas em
resolver as adversidades... Alguma coisa, no entanto, eu aprendera com ele.
Isso me animaria. Atravessei a ponte, passei o castelo e, metido comigo, foi
com surpresa que súbito me vi a caminhar rodeado da multidão. Deixei-me levar e
daí a pouco entrava na basílica de São Pedro. Era domingo. O papa oficiava
acolitado por quatro cardeais, mas a pompa das cerimónias e a excessiva riqueza
do templo não se me quadravam com o abatimento de alma e eu saí dali, Deus me
perdoe, sem ser capaz de rezar um padre-nosso. Dei em cuidar nisso por muito
tempo, enquanto que ia saindo da cidade... Não se me acomoda o roteiro interior
ao itinerário externo dos meus passos. Olho em voragem os fantasmas do passado
e do presente que me surgem no caminho, a fúria do tempo em destruir a memória,
a fúria do momento em, sobre aquela, construir outra..., ossadas de esbeltas
colunas de templos romanos, olha acolá o de Saturno..., templos em ruína,
templos em construção, morrem uns deuses, nascem outros..., destroços de arcos
antigos que um dia foram triunfais como os que agora aí estão sendo edificados
com igual arte à espera de igual sorte, o de Tito comemora o saque de
Jerusalém, o de Constantino celebra a vitória sobre o imperador Maxêncio na batalha
da ponte Mílvio. Deveu-se, rezavam as lendas, a tê-lo um anjo exortado em sonho
a que marcasse um qui e um ró nos escudos dos seus soldados ou a ter-lhe
aparecido nos céus, ia a refrega em meio, a cruz do Salvador, in hoc signo vinces...,
anfiteatros, arenas, colossos, fontes e repuxos, deuses e deusas desnudados os
corpos de mármore, mortos como a eternidade por entre o gargalhar cósmico da
água..., a coluna de Trajano, memorando a conquista da Dácia, lembra a edificação
de um império que levou séculos a tornar-se pó... A mim bastaram-me três horas
para pulverizar o meu...
Saí
de Roma de meu vagar, seguindo algum tempo o curso do Tibre, desesperançado de
alguma vez aí voltar a cumprir a minha tenção de solicitar ao sumo pontífice a
necessária ajuda, sem alento sequer para prosseguir no propósito a que me obrigara
o velho eremitão meu companheiro do Sinai, que Deus haja. Peregrinando e esmolando
ao acaso pelos santuários de Itália, transpus em breve os Apeninos, visitei
Assis, na margem do Chiascio, aonde entrei pela porta de São Pedro, a basílica
no cimo do monte Subásio, desci para o Adriático a rezar na casa santa de Nossa
Senhora do Loreto... Mas para que hei-de eu estar a maçar-vos com as minhas
desaventuras? Um pouco mais de paciência. Acabarei já... Dormia nos portais das
igrejas, debaixo de pontes, na espessura da floresta, nas grutas dos montes...
Subi a Ancona, a Ravena, a Ferrara... Depois de Mântua e Verona, acolhi-me à
piedade de meu padre Santo António, em Pádua, e finalmente vim ter a esta
Veneza em que, a Deus graças, encontrei conterrâneos meus que me reconheceram e
ajudaram...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1.
Cortesia de Difel/JDACT
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,