terça-feira, 31 de maio de 2022

No 31. A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «… cadeiras de couro, tapeçarias ricas, panejamentos de seda e ouro..., como para rei, dizia a rir Carlo e Vittorio fazia vénia solene: ... além de que, dizia, Vossa Senhoria está a dois passos do Vaticano e de Sua Santidade...»

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O Sósia

«(…) Que me quereis falar recebia-o o sacerdote na sacristia da Annunziata dei Catalani, enquanto, de costas, se desparamentava. Sou português disse-lhe. Venho do Sinai, onde estive muitos anos em penitência e desejava enviar um mensageiro ao meu país. Disseram-me que vós... Estranha coisa essa!, virou-se para mim. Há muito tempo que ninguém tem vindo reclamar os meus serviços. A última vez foi há bons anos, recado de um nobre português que andava incógnito pela Europa e na sua terra todos julgavam morto naquela batalha do Norte de África...

Era um franciscano baixo, gordo, o semblante invulgarmente agradável, com perpétuo sorriso nos olhos e na boca, mesmo quando acrescentava que tinha tanto ódio aos Espanhóis, que ocupavam a sua pátria... também a minha. ... basta seres português para eu me pôr ao teu serviço. És capaz de guardar um segredo? Darei a vida pelos segredos que guardo. Mas sou homem prático. Ajoelha-te aqui... e, sentando-se num cadeiral iluminado pelo vitral da janela, dispôs-se a ouvir-me em confissão. Daí a meia hora, o frade, a pé, guiava pela toa o jumento em que eu ia montado, pelas ruas da cidade, por entre rebanhos de cabras, mulheres que subiam do porto com canastras de peixe à cabeça e filhos agarrados às saias, ladeando pomares de fruto de espinho, à vista do mar muito azul ponteado de ilhotas, lá em baixo a costa rochosa recortada de abras acolhedoras e, da outra banda do estreito, as terras da Calábria dominadas pelo Aspromonte.

Aqui vai nos lombos de um asno, pendurado no sorriso de um franciscano e nos sonhos do desarrependimento, olhando o fuminho anilado e distante de Lo Stromboli como se fora o seu pensamento, o rei de Portugal. É longe? Aí já adiante. Parámos à porta de uma casa de um só piso, na sombra de um limoeiro. O frade bateu: Túlio! Paola! Não tardou que assomasse à entrada uma mulher muito formosa e não me puderam os olhos desafeiçoados e o sentimento desafeito deixar de atentar-lhe na cintura delgada a relevar-lhe o redondo das ancas e na tumescência do peito moldada no corpete encarnado sob a camisa branca. Ah! Fra Raimundo! Entrai. Meu marido anda lá atrás com a filha a colher laranjas. Entrai. E, como me fitasse curiosa de saber quem eu fosse, Um amigo português, disse o frade. A senhora Paola Galardetta. Entrámos na peugada da anfitriã e atravessámos a sala e a cozinha para as traseiras. Marco Túlio Catizone, ia explicando Frei Raimundo, é um dos meus mensageiros. Calabrês de nação, casado com Paola Gallardeta. O homem que procurais, o mais apto e indicado para o que pretendeis.

Marco, chama a mulher, anda cá. Tens visitas. Ele surgiu do fundo da cortinha acompanhado de uma moça de seus dezoito anos, muito esbelta, com uma cesta cheia de laranjas e tangerinas: Fra Raimondo, a que devo a honra...? Marco Túlio era um homem da minha idade, da minha estatura, da minha compleição. Os cabelos negros e a tez morena contrastavam com a minha pele branca e cabeleira loira. Todavia as feições, não fora a cara rapada, incrivelmente semelhantes às minhas..., a expressão dos olhos, a testa alta, a arcada do queixo..., se ele deixasse crescer a barba, talhada como a minha, pensei, bem poderia ter eu ali um sósia... Não sei porque me veio isso à ideia, mas dei-me conta, não sem algum rebate, de que, a um certo ponto a esta parte, desde que abandonei a Terra Santa, me andava a imaginação perigosamente insofreada. Resolvi haver sobre mim o necessário açaimo, tanta dolorosa desconfiança tinha, depois dos últimos vinte anos de amargas e mortificadas experiências, do meu pendor.

Levantava-se do mar uma aragem que nos arrepiava a pele. Marco Túlio levou-nos para dentro, assentámo-nos os três a uma mesa e, enquanto comíamos do pão e bebíamos do vinho que Paola e a filha nos serviram, falámos do que ali me trouxera. Eu tinha a intenção de ir a Roma falar com o papa Clemente, mas necessitava, antes, de dois serviços dos amigos: que Túlio partisse para Portugal com cartas minhas endereçadas a certos senhores, a anunciar o meu regresso, e Frei Raimundo diligenciasse contratar-me dois criados convenientes a meu estado. Se eu não tivesse de ajudar-vos no primeiro serviço disse o calabrês, bem gostava de vos ser prestimoso no segundo. O franciscano não demorou a encontrar-me os dois pajens, que reputava pessoas da máxima discrição, e, levados a cabo todos os preparativos, Marco Túlio abalou para Portugal e eu, com Carlo e Vittorio, embarquei para Roma. A pensar na audiência de Sua Santidade, procurei dar dignidade à minha reduzida comitiva, mas Carlo, de espírito faceto, para ele tudo era riso, como eu agora também ia compreendendo a comédia humana!, e Vittorio, dissimulado, pelo excesso de cerimónia tornava-se ridículo. Como não tinha mordomo a quem incumbisse da tarefa de os moldar, não sabia que havia de fazer, mas os sucessos futuros encarregaram-se de me dar a conhecer quem tinha a meu serviço. Mal chegámos, tomámos aposentadoria na Ostaria dell'Orso, próximo da ponte de Santo Angelo. Bons cómodos em quadra com quatro câmaras, sala de estar, sala de refeições, cozinha com cozinheiro às ordens, mobiliário a preceito, cadeiras de couro, tapeçarias ricas, panejamentos de seda e ouro..., como para rei, dizia a rir Carlo e Vittorio fazia vénia solene: ... além de que, dizia, Vossa Senhoria está a dois passos do Vaticano e de Sua Santidade...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,