«(…)
E o sonho repete-se?, interrompeu o sacerdote. Muitas vezes, mais nos últimos
tempos: E é sempre o mesmo? Com pequenas diferenças. O vidente meditou
longamente e disse: Também no teu sonho o oráculo fala claro pela voz do deus
que se denomina a si mesmo El-Chadai, o Altíssimo. O arco-íris é a ponte entre
o céu e a terra, assim tu és o mediador entre El-Chadai e a tua tribo. Vais
fazer uma grande viagem, não só pelo mundo mas também dentro de ti mesmo,
porque a montanha é símbolo de purificação e aperfeiçoamento. O rebanho
representa os teus seguidores ou todos os nascidos da tua semente, pois o cajado
que o menino te entrega e aponta para Ocidente confere-te a autoridade e a
dignidade de um chefe, confirmadas pela águia que indicia riqueza e poder. Curvando-se
diante do suplicante, o sacerdote acrescentou com humildade: Abraão, foste
abençoado pelos deuses. Vai e cumpre o teu destino! Não sejas negligente nos
cuidados com a tua casa, recomendou Tare a Sarai, na despedida. - Rogarei aos
deuses que te ajudem para em breve me dares um neto. Envia-me notícias por
viajantes ou comerciantes que venham para Harran. Sarai prometeu fazê-lo. Então
Tare dirigiu-se ao filho: A tua vida vai ser a de um pastor nómade, errando
pelo mundo. Não pretendo pôr em dúvida a sabedoria dos videntes, mas nunca
ninguém ouviu falar do deus El-Chadai que quer ser adorado como único e verdadeiro!
Esperemos que essa ideia blasfema não faça cair sobre a tua cabeça a ira e o
castigo de todos os outros deuses. Abraão não respondeu, a fim de evitar nova
disputa no momento da despedida e o pai prosseguiu com as suas queixas: Preferia
que Lot ficasse a viver comigo, mas não quero desobedecer aos oráculos do
Zigurate e ser amaldiçoado. Se o menino do sonho é Lot, como tu dizes, e quer
ir contigo, não serei eu a impedi-lo. Ide, com a minha bênção! Abraão abandonou
finalmente a casa paterna, levando consigo Sarai, o sobrinho Lot, alguns
parentes e amigos, assim como todos os bens que possuía e os escravos por ele
adquiridos em Harran.
A
caravana era numerosa e deslocava-se lentamente para Ocidente, deixando a idade
para trás e seguindo pelos caminhos familiares das antigas pastagens, adiando o
medo do desconhecido e de um futuro incerto. Ao anoitecer, depois de armarem as
tendas do acampamento, comeram junto das fogueiras, beberam o sumo das suas
uvas, mas ninguém cantou, pois todos traziam um peso no coração pela mágoa e a
saudade daquilo que deixavam (e tão cedo não voltariam a ver) em troca de uma
vaga promessa de um futuro melhor. Sobre as peles de carneiro que lhes serviam
de leito, no espaço exíguo da tenda, Sarai exibia a sua esplêndida nudez aos
olhos do marido, abrindo o corpo como um fruto suculento ao toque dos seus
dedos. E Abraão sentia na curva dos seios, na concavidade macia do ventre, o
arrepio da pele de Sarai sob a sua mão, respondendo com um desejo igual ao seu
desejo, crescendo dentro dele como o pulsar desordenado de um coração.
Beijou-lhe a pele dourada, prendendo entre os lábios os mamilos rosados, até os
sentir endurecer e inchar sob a língua e vibrar de anseio como o seu próprio
ventre. Quando finalmente se fundiu no corpo da mulher, vergando-a com o seu
peso e a sua fúria, Sarai gritou, gemeu e suspirou, libertando sem pejo os sons
de prazer que há longos anos sufocava na garganta. Durante muito tempo Abraão
guiou a tribo através de terras inóspitas, por vezes desérticas, montando e
desmontando as tendas do acampamento, atardando-se um pouco mais nos melhores
terrenos para apascentar o gado, sem que El-Chadai lhe mostrasse por qualquer
sinal a terra prometida. As promessas do deus tardavam em cumprir-se, as
murmurações de descontentamento dos familiares, amigos e servos aumentavam de
tom e chegavam-lhe aos ouvidos. Sarai, que andava sempre de mau humor e
cansada, continuava estéril e, por fim, também ele começou a deixar-se invadir
pelo desânimo e a pensar se o sonho profético não teria sido obra de qualquer
demónio malévolo para o fazer cair num terrível logro.
Por
isso, quando avistou as férteis terras de Canaã quase duvidou do que os seus
olhos viam e cobiçou-as como jamais havia desejado uma coisa na sua vida.
Animou a tribo a seguir até ao lugar dos carvalhos de More, perto da cidade de
Siquém, na amena planície situada entre os montes de Ebal e Garizim. Vendo a
beleza do lugar, Abraão sentiu mais do que ouviu a voz do seu Deus dizer-lhe: Darei esta terra à tua descendência
e vendo como a sua gente estava exausta, a ponto de se revoltar, recusando-se
a ir mais longe, disse-lhes: Rejubilai! Esta é a terra prometida por El-Chadai.
Ergamos aqui um altar ao Todo-Poderoso, pois Ele nos concedeu esta terra. Todos
rejubilaram e um altar foi erguido em honra do Deus único de Abraão. Nessa
noite, no acampamento, depois de montarem as tendas, sacrificaram oito borregos
a El-Chadai, cantaram e dançaram como há muito tempo não faziam, aspergindo-se
com o sangue do holocausto e o vinho, reanimando o prazer dos sentidos nos
cultos ancestrais». In Deana Barroqueiro, Contos Eróticos do Antigo
Testamento, 2003, Planeta Editora, 2018, ISBN 978-989-777-143-9.
Cortesia de PanetaE/JDACT
JDACT, Deana Barroqueiro, Religião, Literatura,