«(…) E, ao publicar em Halle o Cancioneiro da Ajuda, aponta os nomes dos poetas satíricos mais antigos: Joan Soares Paiva, Fernan Rodrigues Calheiros, Fernan Paes Talamancos e Martin Soárez, sendo este o fidalgo-trovador mais velho de quantos conhecemos, diz ela. E ajunta, pouco depois: foi na côrte de Alfonso X que se geraram as principaes cantigas de escarnho e maldizer, algumas das quaes se guardavam de certo bem fechadas, e foram a custo arrancadas aos esconderijos. Ao tratar da época medieval, em Lições de Literatura Portuguesa, Rodrigues Lapa dedica páginas sugestivas, não só em torno das cantigas de escárnio e maldizer, em geral, mas também em torno das suas relações com a Provença e alguns temas principais que as agrupam. Mais perto dos nossos dias, Manuel Aguiar oferece ao leitor uma galeria de caricaturas: O nobre ou «ricome; Papa, bispos e clérigos; O trovador; A soldadeira; Os supersticiosos; Os maus juízes; Os perdidos de amor; O mentiroso; Os defeitos físicos; Os tipos miúdos. Enfim, dentre os estrangeiros, isolamos Kenneth R. Scholberg e a sua distribuição das cantigas de escárnio e maldizer. Como agrupar toda a bicharia da Arca de Noé? Em muitos ou poucos grupos? Num livro breve, temos de optar por uma coisa e, quando muito, insinuar o que fica na sombra, e é mais do que pensamos. Manuel Aguiar, em nota final, aponta uma enorme litania de tipos caricaturais, que um dia poderão sair do limbo em que os deixou: o esfomeado, o miserável, o pedinchão, o parasita, o medroso, o traidor, o fanfarrão, o pretensioso, o clérigo comilão e metido em brigas, as freiras mundanas, o coxo, o careca, a mulher gorducha, a mulher feia, a coscuvilheira, o tímido diante da sua dama, o plagiador de versos, o mau trovador, o supersticioso, o agoirento, o astrólogo, o mau médico, o juíz peitável, o amoroso lamechas, o interesseiro em casar rico, o avarento, o caloteiro, etc. Tudo, porém, tem os seus limites, e é bom que os vindouros tenham que fazer.
Ao agruparmos cantigas de escárnio e maldizer, não procurámos saber, antes, como os outros tinham feito. Só depois. E assim, ora coincidimos pela força dos textos, ora nos metemos por caminhos diferentes, devido a critérios e gostos diversos. Abrimos pelas sátiras de alcance ecuménico e que podem cifrar-se nesta frase dos velhos de agora: Os tempos vão maus!
Sátiras dos Tempos Maus
Joan Soárez Coelho troça cruelmente de João Fernandes, com feições de
mouro, por a mulher ser amiga dum escravo. Na cantiga seguinte, insiste neste caso,
mas alarga a sátira à história daquele tempo: Anda perturbado o mundo, João
Fernandes. O Imperador levantou-se contra Roma, vieram os Tártaros e, agora, vemos-te
com intenção de abalar para a Terra Santa. Ora, nas profecias do fim do mundo,
é este um dos quinze sinais: andar o mundo baralhado e o mouro fazer-se
cruzado. João Fernandes, acreditai em mim, que sou bom letrado! É sinal de já
ter nascido o Anticristo Martin Moxa, por seu lado, também fala, dos tempos do
Anticristo. Há guerras, injustiças, ambições e falta o juízo, e a mesura. Hospital ou igreja,
romeiro, fidalgo ou religioso, tudo é desrespeitado, por bom que seja. Forçam
as mulheres, roubam nos caminhos, não temem alcaides nem meirinhos, antes acham
sempre quem os proteja. Ninguém defende os agricultores, as vinhas e as herdades
ficam por cultivar, não há com que pagar as rendas e perdem-se as honras». In
Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV),
Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.
Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT
JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,