A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491
Zarita
«(…) Um dos homens acenou-lhe com
a cabeça; imediatamente, o cavalariço largou o balde, espalhando a água que
havia recolhido, e seguiu a passos rápidos e parou diante dele. Bartolomé era
muito inocente e faria qualquer coisa para agradá-lo. Embora tivesse quase 20
anos, sua mente era a de uma criança. Minha mãe me dissera que pessoas como
Bartolomé são os seres mais preciosos de Deus. São enviadas para esta terra
para nos lembrar de nunca perder nosso senso de deslumbramento. Sorri ao ver
Bartolomé agitar furiosamente a cabeça e abanar os braços no ar. E pensei, se
esses homens pretendem se intrometer nos nossos assuntos, nada conseguirão
arrancar dele que faça sentido. Mais tarde, minha antiga ama, Ardelia,
trouxe-me a refeição da noite. Seu pai pediu que ficasse no seu quarto até à hora
de dormir. Porquê?, perguntei. Ela baixou a voz. Dom Vicente Alonzo acha melhor
que você e Lorena não estejam por perto enquanto esses homens estiverem nos
visitando. Olhou para o tecto. O padre Besian vai dormir no sótão bem em cima
de você. Ele pediu o quarto mais simples da casa. Os outros estão nos aposentos
dos criados acima dos estábulos. Fez uma careta. Ninguém lá está falando com
eles. Excepto Bartolomé, emendei. Mais cedo, eu o vi falando com eles. O quê?,
Ardelia pareceu alarmada. Preciso contar isso a Serafina e Garci. Saiu
apressada do quarto.
Ao apanhar a comida, minha
sensação de intranquilidade aumentou. Porque Ardelia ficou tão transtornada e
porque o pai queria que eu permanecesse no meu quarto? Não me importei muito
com isso, em parte porque ele impôs o mesmo a Lorena, mas também porque fiquei
contente por não ter de me encontrar com o padre Besian. A ideia de me
confessar com ele começava a me perturbar. Não muito tempo depois de ter me
recolhido para dormir, ouvi o rangido de tábuas no soalho acima de minha
cabeça. O padre Besian devia estar se preparando para dormir. Se eu tivesse de
me confessar com ele, o que deveria dizer? Eu detestava Lorena. Isso era um
pecado contra a tolerância. Eu contara isso numa confissão ao nosso sacerdote,
o padre Andrés, e ele dissera que era por causa da grande dor que eu ainda
carregava pela perda de minha mãe. Esses pensamentos ruins eram sentimentos
naturais, mas eu precisava superá-los. Ele me garantiu que desapareceriam, principalmente
depois que Lorena tivesse um bebé, o que, sem dúvida, aconteceria em pouco
tempo. Então eu amaria essa criança e passaria a aceitar Lorena melhor. Eu
dissera a Serafina, mulher de Garci, que desgostava muito de Lorena, e ela, com
a cabeça curvada sobre o fogão, murmurou: Não tanto quanto eu. Isso me fez rir,
mas sabia que não era a reacção de que a mãezinha teria gostado, e eu tentava
viver como ela gostaria que eu vivesse. Quando meus ânimos estavam baixos e
esses pensamentos ameaçavam me dominar, eu ia ao convento-hospital de minha tia
Beatriz e procurava um bálsamo para minha alma.
Zarita, disse-me ela, você não é
sua mãe. Ela era uma santa mulher, mais santa do que eu jamais consegui ser, e
sou freira. Embora esta ordem que fundei não seja reconhecida por qualquer
decreto formal do papa, fiz votos a mim mesma e a Deus para preservar certas
virtudes. Mas saiba disto: eu não fui a criança boa de minha família. Em minha
juventude, na corte, levei uma vida mais desenfreada do que era julgado
apropriado para uma garota daquela época. Minha irmã, sua mãe, era quem tinha a
verdadeira bondade dentro de si. Existem poucas pessoas capazes de rivalizar
com ela. Tia Beatriz puxou-me para perto dela, alisou meu cabelo e me tranquilizou.
Você tem de ser você mesma, Zarita. Não pode ser outra pessoa.
Além disso, porém, pesando em
minha consciência havia um outro pecado, bem maior, que eu não havia confessado
a ninguém: a ocasião em que virei o rosto para Deus porque Ele não poupara a
vida de minha mãe e de meu irmãozinho bebé. Enterrei isso bem fundo dentro de
mim e nunca falei a respeito. Eu agora suava. Esses pensamentos se acumularam
na minha mente, ao mesmo tempo que os passos do padre Besian ressoavam acima de
minha cabeça. Havia em mim uma forte convicção de que, se eu ocultasse algo
desse padre numa confissão, ele saberia. Resolvi evitar confessar-me com ele.
Fracamente, ouvi o entoar de preces enquanto ele recitava seu ofício nocturno,
e mergulhei num sono agitado». In Theresa Breslin, Prisioneira da
Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,