O Sósia
«(…)
O papa, no ar cansado, tinha aquele meio sorriso sonso, Deus me perdoe, de quem
cumpre a rotina. Falei procurando ser sucinto, contei-lhe de mim, aduzi a
autoridade dos meus amigos ali presentes, que anuíam com a cabeça. O semblante
do pontífice foi-se alterando ao passo que eu avançava no meu relato e, de
meramente curioso, demudou em estupefacto. Quando terminei, disse: Meu filho. É
deveras assombroso o que referes, mas em ocorrência de tanta gravidade haveis
de concordar que a vossa palavra sozinha e a de vossos amigos sozinhos não
bastam a prevenir a necessária prudência... Poderei apresentar provas
concretas? Olhou interdito para o camerlengo, para o arcebispo, que não sabiam
que dizer ou fazer em tão inesperada emergência, e com um gesto da direita
convidou-me a continuar.
Saberá
Vossa Santidade que, depois de eu ter ascendido ao trono de Portugal, enviei a
Roma, ao papa Pio quinto, um embaixador especial, o meu legado dom Álvaro Castro,
a prestar-lhe obediência. Esse mesmo pontífice, como é uso, mandou-me pelo
embaixador dom Diogo Meneses o estoque e o chapéu bentos... Quase imperceptível
sinal fez o papa ao cardeal camerlengo, que, compreendendo a mensagem, se
dirigiu a uma porta interior a dar uma ordem. Incitou-me em seguida Sua
Santidade a que me recordasse eu de mais factos concretos das relações do rei
de Portugal com a Santa Sé. Sem qualquer hesitação, precisei: A seis de Outubro
de mil e quinhentos e sessenta e nove, Pio quinto concedeu-me o breve do
jubileu..., parei a vasculhar, a escolher na memória e prossegui: Lembro-me de
que o núncio apostólico, frei Leonardo Marini, arcebispo Lanciano, foi a Portugal
de mando de Gregório treze pedir-me apoio para a liga que o papa pretendia
organizar contra o Turco...
A
porta interior entreabriu-se e o camerlengo acorreu a tomar um maço de
documentos que alguém lhe trazia. O papa e todos os presentes olharam
expectantes. Menos eu. Não morava em mim a dúvida. O camerlengo aproximou-se
com um ar radiante de espanto: Bate tudo certo, Santidade, com o que este
senhor..., com o que Sua Alteza disse!, e mostrava as provas documentais ao papa,
que, durante algum tempo as olhou em silêncio, como a pensar, sem as tomar das
mãos do prelado. Enfim disse: Estas provas terão de ser examinadas pela Cúria. Providenciai
nesse sentido, cardeal. Meu filho, como muito bem deves calcular, podem advir
perturbações internacionais de tão inesperada circunstância. O teu caso, porém,
não será esquecido. O Senhor te acompanhe e à tua comitiva, e, abençoando-nos,
deu a audiência por terminada. O camerlengo acompanhou-nos à porta.
Com
evidente alegria e entusiasmo se congratulavam comigo, a caminho do albergue,
os companheiros pelo bem-sucedido da empresa. Sinto-me a alma a ressuscitar, amigos,
desabafei. Estava morto e ardia nas profundezas do Inferno. Agora refrigera-se-me
o coração. Conquanto, rosnou dentro de si Nuno Costa, não morras depois de
teres ressuscitado...
Na
estalagem, preparavam-me as malas para o regresso a Veneza, vem um criado
dizer-me que se encontrava em baixo um senhor que me desejava falar. Frei
Crisóstomo, pedi, fazei-me essa mercê. Ide ver quem é. Desceu o frade e, daí a
pouco, regressava: Bofé!, disse muito pálido. Quando o olhei, fiquei confundido.
Não vos havia eu deixado aqui, quando desci?... E não é que vos vou encontrar
lá em baixo? Tereis o dom da ubiquidade? O homem, vestido à calabresa, estava
de costas. Ao sentir-me, voltou-se e eu..., dei de caras convosco! Tal e qual.
Convosco. A mesma estatura, o mesmo semblante, a mesma barba e cabelo, embora
mais escuros... Só quando falou me dei conta de que não éreis vós... Tendes um
irmão gémeo?... Quem é então e que pretende? Um calabrês. Pede para falar a Sua
Alteza o rei de Portugal. Como sabe ele...? ... que vos fora apresentado por um
tal fra Raimundo, de Messina, quando o visitastes na Sicília..., que já uma vez
vos fez recado, indo com cartas vossas a Portugal... Túlio!, exclamei. Sim.
Marco Túlio Catizone». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
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JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,