quinta-feira, 9 de junho de 2022

O Segredo da Bastarda. Cristina Norton. «O primeiro baralho possuía tantas cartas quantas letras tem o alfabeto, escritas em minúscula, e a senhorita Felícia começou a mostrar as vogais a Eugénia enquanto pronunciava o som…»

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A Curiosidade de Eugénia

«(…) Dois meses depois, precedida por cartas de recomendação fiáveis, chegou uma mestra disposta a experimentar o original sistema com uma criança de apenas cinco anos. A senhorita Felícia Macedo apresentou-se vestida com uma saia rodada de cor cinzenta e uma blusa pérola de gola rente ao pescoço, que deixou Maria José logo encantada porque não conseguia habituar-se à moda licenciosa de camisas tão largas e decotadas que, na maioria das vezes, ao mínimo gesto deixavam a descoberto os ombros ou a curva de um seio, como se não fosse uma parte do corpo que um pudor natural levasse qualquer mulher a ocultar.

Apresentaram a mestra à filha para que recebesse a primeira aula, e Eugénia, mesmo sem mexer um único músculo da cara, demonstrou claramente não ter ficado entusiasmada com a recém-chegada. Mas, quando esta mandou a pupila sentar-se à mesa da salinha e tirou da sacola de pano que trazia pendurada no cinto quatro baralhos de cartas, e todos os membros da família Meneses que assistiam a prudente distância soltaram um Ah!, de espanto e não resistiram a pôr-se em círculo à volta delas, Eugénia pareceu conquistada.

A Bastarda

Assim que voltou ao quarto da filha, depois de acompanhar o médico à porta, Eugénia Maria não conseguiu reprimir o seu desagrado pelo modo pouco amável como Isabel Maria o tratava em cada visita que este lhe fazia. Minha filha, nem sempre a primeira impressão que temos de alguém é a melhor. Não simpatizas com o médico, nem fazes o menor esforço para o dissimular. Desde que te auscultou pela primeira vez que desconfias dele, mas, acredites ou não, é o melhor especialista em doenças de pulmões que temos, não é em vão que as pessoas com tísica vêm à Madeira tratar-se com ele, além do clima, que é muito bom, precisas da sua ajuda. Não me ralhe. Se não confio nele é porque cada dia estou pior. Ninguém sabe o que se passa dentro do meu corpo nem se apercebe das pequenas mudanças que só eu sinto. As forças deixam-me aos poucos. Tenho medo de morrer. Isabel Maria... Com pensamentos tão pessimistas não podes lutar contra a doença. Tem fé em Deus, minha querida. Olha, a propósito de não gostares do médico, lembrei-me de uma coisa. Sabes que, no dia em que a minha mãe conheceu a senhorita Felícia, ela não lhe caiu nada bem? Achou-a demasiado alta e magra, quase seca, no seu olhar pareceu-lhe descobrir uma rigidez espartana e ficou aterrorizada só de pensar que se pudesse desvanecer como um sonho a sua tão prezada liberdade. Com o tempo percebeu que era igualmente exigente com ela como consigo própria e que os olhos que lhe tinham parecido de um brilho de lâmina eram, afinal, penetrantes para melhor lerem nas almas. Foi no momento em que a senhorita Felícia pegou no molho de cartas e começou a mexer nelas com gestos precisos de ilusionista que a tua avó se sentiu atraída por essa mulher, que acabou por ser a sua melhor amiga.

A Senhorita Felícia

O primeiro baralho possuía tantas cartas quantas letras tem o alfabeto, escritas em minúscula, e a senhorita Felícia começou a mostrar as vogais a Eugénia enquanto pronunciava o som que correspondia a cada uma delas, até a pequena aluna conseguir decorá-las. Depois tirou da bolsinha as cartas dos algarismos, desenhados com pena grossa, do 0 ao 9, fazendo o que fizera com o das letras e incitando Eugénia a colocá-las por ordem em cima da mesa. Nos dias seguintes, apresentou-lhe as consoantes em pequenos grupos para não a confundir e, quando conseguiu que as reconhecesse a todas, ensinou-a a brincar com as cartas dos dois baralhos, alinhando-as de maneira a poder ler o nome do pai, da mãe e dos irmãos todos, completando o jogo com as idades de cada um ao lado. Com o tempo, aumentou o grau de dificuldade e saíram do bolso da senhorita Felícia os últimos baralhos, o das letras maiúsculas e, no fim, o das letras de imprensa. Só quando Eugénia as soube ler sem soletrar teve direito a uma folha de papel, uma pena, um canivete e um tinteiro, que a mãe lhe ofereceu com a solenidade de quem outorgava um privilégio real porque, ainda que algumas mulheres soubessem ler, poucas eram as que aprendiam a escrever por se acreditar ser uma coisa inútil e até perigosa para o sexo feminino». In Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-231-047-3.

Cortesia de OdoLivro/JDACT

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