A Curiosidade de Eugénia
«(…) Dois meses
depois, precedida por cartas de recomendação fiáveis, chegou uma mestra disposta
a experimentar o original sistema com uma criança de apenas cinco anos. A
senhorita Felícia Macedo apresentou-se vestida com uma saia rodada de cor
cinzenta e uma blusa pérola de gola rente ao pescoço, que deixou Maria José
logo encantada porque não conseguia habituar-se à moda licenciosa de camisas
tão largas e decotadas que, na maioria das vezes, ao mínimo gesto deixavam a
descoberto os ombros ou a curva de um seio, como se não fosse uma parte do corpo
que um pudor natural levasse qualquer mulher a ocultar.
Apresentaram a
mestra à filha para que recebesse a primeira aula, e Eugénia, mesmo sem mexer
um único músculo da cara, demonstrou claramente não ter ficado entusiasmada com
a recém-chegada. Mas, quando esta mandou a pupila sentar-se à mesa da salinha e
tirou da sacola de pano que trazia pendurada no cinto quatro baralhos de cartas,
e todos os membros da família Meneses que assistiam a prudente distância
soltaram um Ah!, de espanto e não
resistiram a pôr-se em círculo à volta delas, Eugénia pareceu conquistada.
A
Bastarda
Assim que voltou ao
quarto da filha, depois de acompanhar o médico à porta, Eugénia Maria não
conseguiu reprimir o seu desagrado pelo modo pouco amável como Isabel Maria o tratava
em cada visita que este lhe fazia. Minha filha, nem sempre a primeira impressão
que temos de alguém é a melhor. Não simpatizas com o médico, nem fazes o menor
esforço para o dissimular. Desde que te auscultou pela primeira vez que desconfias
dele, mas, acredites ou não, é o melhor especialista em doenças de pulmões que
temos, não é em vão que as pessoas com tísica vêm à Madeira tratar-se com ele, além
do clima, que é muito bom, precisas da sua ajuda. Não me ralhe. Se não confio
nele é porque cada dia estou pior. Ninguém sabe o que se passa dentro do meu
corpo nem se apercebe das pequenas mudanças que só eu sinto. As forças deixam-me
aos poucos. Tenho medo de morrer. Isabel Maria... Com pensamentos tão
pessimistas não podes lutar contra a doença. Tem fé em Deus, minha querida.
Olha, a propósito de não gostares do médico, lembrei-me de uma coisa. Sabes
que, no dia em que a minha mãe conheceu a senhorita Felícia, ela não lhe caiu
nada bem? Achou-a demasiado alta e magra, quase seca, no seu olhar pareceu-lhe
descobrir uma rigidez espartana e ficou aterrorizada só de pensar que se
pudesse desvanecer como um sonho a sua tão prezada liberdade. Com o tempo
percebeu que era igualmente exigente com ela como consigo própria e que os
olhos que lhe tinham parecido de um brilho de lâmina eram, afinal, penetrantes
para melhor lerem nas almas. Foi no momento em que a senhorita Felícia pegou no
molho de cartas e começou a mexer nelas com gestos precisos de ilusionista que
a tua avó se sentiu atraída por essa mulher, que acabou por ser a sua melhor
amiga.
A
Senhorita Felícia
O primeiro baralho
possuía tantas cartas quantas letras tem o alfabeto, escritas em minúscula, e a
senhorita Felícia começou a mostrar as vogais a Eugénia enquanto pronunciava o som
que correspondia a cada uma delas, até a pequena aluna conseguir decorá-las.
Depois tirou da bolsinha as cartas dos algarismos, desenhados com pena grossa,
do 0 ao 9, fazendo o que fizera com o das letras e incitando Eugénia a colocá-las
por ordem em cima da mesa. Nos dias seguintes, apresentou-lhe as consoantes em
pequenos grupos para não a confundir e, quando conseguiu que as reconhecesse a
todas, ensinou-a a brincar com as cartas dos dois baralhos, alinhando-as de
maneira a poder ler o nome do pai, da mãe e dos irmãos todos, completando o jogo
com as idades de cada um ao lado. Com o tempo, aumentou o grau de dificuldade e
saíram do bolso da senhorita Felícia os últimos baralhos, o das letras maiúsculas
e, no fim, o das letras de imprensa. Só quando Eugénia as soube ler sem soletrar
teve direito a uma folha de papel, uma pena, um canivete e um tinteiro, que a mãe
lhe ofereceu com a solenidade de quem outorgava um privilégio real porque,
ainda que algumas mulheres soubessem ler, poucas eram as que aprendiam a
escrever por se acreditar ser uma coisa inútil e até perigosa para o sexo
feminino». In Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002,
Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-231-047-3.
Cortesia de OdoLivro/JDACT
JDACT, Cristina Norton, Literatura,