terça-feira, 21 de junho de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Minha prima olhou-o fixamente e acrescentou: É isso que tendes de contar a vosso pai. O rapaz deu o seu mudo acordo ao estratagema. Quando, já na tenda, Paio Soares lhe perguntou o que se passara entre Afonso Henriques e Chamoa…»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126

«(… ) No dia seguinte, Maria Gomes disse-me que, naquele momento, Chamoa sentiu uma emoção muito forte. Era o seu sonho de criança, casar com um príncipe, e agora ali estava ela nas mãos de um, o príncipe de Portugal! Deus meu, que alegria! Mas, o que dirão meus pais, minha irmã?, pensou. Segundo contou, Afonso Henriques terá insistido: É a minha vontade e vosso pai aprova de certeza, a defesa de Toronho fica garantida! Será a união da Galiza, o príncipe do Condado casado com uma Trava! Dizei que me amais, que vos casais comigo!

Chamoa estava já enamorada dele e acenou com a cabeça. Acreditou que ia ser princesa, ou rainha. Inebriada com aquele pensamento intoxicante, esteve quase a deixar-se levar pela loucura do momento, mas conteve-se e alegou que, mesmo assim, era melhor ele não se meter dentro dela. Contudo, para o compensar da momentânea desilusão, Chamoa abriu-lhe a dalmática, puxou-lhe o saiote para cima e, entusiasmada com o que via, exclamou: Afinal, o milagre não foi só nas pernas! Quando terminou de o beijar, deitaram-se lado a lado, enamorados, e renovaram as promessas de casamento, antes de se comporem e regressarem pela estrada por onde tinham vindo. No seu lugar e embora destroçada, minha prima Raimunda mantivera-se imóvel, e quando observou Ramiro verificou, espantada, que ele havia desmaiado. Em passo rápido, aproximou-se dele, ajoelhou ao seu lado e abanou-o. O jovem acordou, atarantado, e Raimunda disse-lhe que os outros já tinham retornado à festa de Sábado de Aleluia. Confuso, Ramiro quis saber o que se passara, mas ela disse-lhe apenas: Nada, só conversaram.

Minha prima olhou-o fixamente e acrescentou: É isso que tendes de contar a vosso pai. O rapaz deu o seu mudo acordo ao estratagema. Quando, já na tenda, Paio Soares lhe perguntou o que se passara entre Afonso Henriques e Chamoa, o filho limitou-se a repetir as palavras de Raimunda: Nada, só conversaram. Tanto Raimunda como Ramiro mentiam muito bem, mas só dois grandes mentirosos, na sua ilusão, acreditam que as mentiras são seres mortos e bem sepultados e não seres vivos, que um dia reaparecem. Quando a verdade surge, o sonho dos mentirosos torna-se pesadelo. Ao final dessa tarde, enquanto muitos de nós jogávamos à malha, ou nos torneávamos em combates de espada que eu sempre vencia, correu a notícia de que o vaidoso Paio Soares se fechara, amuado, na casa onde pernoitava, e se recusava a comparecer à ceia. Alguns diziam que estava enraivecido com o desaparecimento súbito do seu belíssimo punhal, outros que se enciumara com a corte que Afonso Henriques fizera a Chamoa, mas, fosse qual fosse a razão, o certo é que dona Teresa cancelou o repasto público». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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